quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O coração e o zíper...

Desolada em meio ao olhar vidrado e perdido no horizonte a depositar o adeus de mais um dia, Anita lembrou-se de abrir o zíper de seu coração, para ver se ali, mesmo diante de tanta atrocidade cometida por um mundo que muito pouco sabe sobre amar, ainda existia algum vestígio hábil a bombear sangue para seu corpo desfalecido.

Mesmo sendo o músculo mais forte do corpo, o nobre coração da jovem não mais aguentava as incertas de um pulsar que não sabia se era a batida de tantas ilusões que não se findavam na vida da jovem, ou se, de fato, era remanescência da força em superar a si e à sua dor.

Tantos foram os atropelos de sua vida que, mesmo disfarçados em frases de amor a se propalar na mesmice como o cheiro de sândalo a encher o ar, o único pensamento de Anita era saber a razão pela qual o aroma maravilhoso encobria, lá no fundinho da alma dos adorados, o cheiro virulento de ocre e fel emanados da boca vazia de palavras sinceras.

Tentava manter impoluto seu coração para acreditar na vida, pretendendo, com isso, trazer esperança para sua trajetória tão calejada em marcas que somente naquele momento de desalinho Anita poderia realmente ver.

Sim, queria finalmente abrir seu coração, para saber quão profundas foram as laceradas feitas nele!

Teria sido Anita, afinal, uma péssima "dona de coração"? Onde falhou com seu querido órgão? Estaria faltando algum pedaço dele? Como consertar? Onde buscar compor o buraco que sequer sabia se existia ali? Definitivamente precisava abrir o zíper. Assombroso zíper. Indecifrável zíper. Temido pechado de ferro a separar Anita da carne trôpega a lhe fazer tanta falta.

A culpa lhe invadia o ouvido, sussurando-lhe a aspereza dos segredos mais ocultos que a moça não desejava mais ver. Não poderia mais dar atenção àquelas palavras: era necessário vencer o medo e abrir, de vez, o zíper.

Nunca havia feito isso...

O fecho estava emperrado, quase enferrujando diante do tempo incessante, desanimando Anita, por segundos. Ah, quem deseja realmente ver um coração doído? Quem seria louco o bastante para abrir as portas de sua vida e de sua alma o bastante para olhar dentro de sua miséria mais profunda e extrair de lá as lições que poucos desejam ver?

Isso bastou para dar ânimo à intentada e, com a mão trêmula que parecia ter vida própria ao se negar a obedecer a jovem, Anita segurou, enfim, o zíper de seu peito, respirou fundo e, num movimento só, abriu a couraça de seu invólucro.

Sentiu ao mesmo tempo, uma dor tão profunda que, diante do impacto do ato, a corajosa mulher quase sucumbiu ao desmaio... Era muito perdi-lhe que se mantivesse íntegra diante do momento incomum de olhar para dentro da chaga purulenta que insistia em não ceder. Urrou, bradando com o útero a dissonância incontida em seu peito.

O tempo é uma categoria realmente interessante, porque não sabemos realmente quanto significam segundos. O certo, porém, foi que Anita não soube quanto tempo durou a sensação de extirpação. De súbito não sentia mais as pernas, os pés, as mãos. Tudo era uma grande massa amorfa de dor, invadindo-lhe, sem pedir a menor licença, seu receptáculo tão precioso.

Mas toda essa sensação nefasta trouxe o presente que Anita aguardava, pois, enfim, conseguira abrir o zíper, retirando cuidadosamente cada pedacinho de coágulo que havia se depositado ali. Afastou cuidadosamente cada lado de seu peito e afagou carinhosamente seu músculo, querendo retirá-lo dali para saber se ainda restava algo nele para que pudesse funcionar.

Ao pegar sei coração, a jovem fitou, por momentos, aquele receptáculo rosáceo, não acreditando na beleza do que via ali, pois, àquela altura, pensava que não tinha mais nada dentro do peito. Julgava que as dores, uma atrás da outra, haviam secado o órgão ou, talvez, lacerado de tamanha sorte que, ao menor toque, o coração pudesse se esfacelar. Mas diante do seu coração disposto em suas calejadas mãos, Anita teve uma bela surpresa: ele estava ali, pleno! Forte, bombeando sangue como nunca!

Havia marcas, sim. Uma, duas, três. Nossa, Anita desistiu de contar quantas eram, pois o desânimo a invadiu quando chegou ao vinte. Decidiu parar naquele número, percebendo, entretanto, que as cicatrizes estavam secas. Algumas eram mais recentes, outras já tinham deixado espaço para um fino tecido dourado a revestir o lugar onde haviam sido produzidas.

Seu coração, enfim, ainda estava ali, intacto! Depois de avassaladoras contingências, o órgão ainda pulsava! Fortalecida em seu propósito, Anita, então, compreendeu que as marcas sempre existiriam, mas, lembrando-se de Nietzsche, tornavam-na mais forte se, de fato, não a matassem...

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