Celticidade, vida e trajetórias

Que início?!

As primeiras páginas de um escrito são um começo. Disso ninguém duvida, até mesmo porque, antes da capa, fisicamente não existe livro. Mas, poucas e afortunadas almas sensíveis indagam sobre a anterioridade do que se concretizou nas folhas de papel justapostas, trazendo o brotamento e a explosão do rico e denso conteúdo da alma de quem está imantando de sua mente o que escreve.

O que está por trás do papel é verdadeiramente mais importante, tanto para quem escreve - autêntica doação de suas entranhas - como, também, para quem, de alguma forma, procura absorver a delicadeza transmutada em prosa, verso, conto ou relato. Não seria exagero afirmar ser o caminho solitário do escritor até a concretização na aparência do real – mundo físico – o mais importante, por conta das marcas que agregam o espírito e que podem ser partilhadas com quem se encontra também na busca.

Assim sendo, não importa o físico paginado na grotesca bidimensionalidade “achatadora” da alma porque é na invisibilidade do mundo etéreo que a vida se processa. Tamanha riqueza e complexidade, lente alguma pode desnudar, pois, como diria Exupéry, o “só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos”.

O caminho do coração é a linguagem mais perfeita para a tr
adução dos anseios da alma e do espírito, não podendo ser substituído pelos labirintos de uma racionalidade tortuosa que, no suspiro pelo domínio e poder, empacotou milênios de conhecimento intuitivo em fórmulas mágicas, designadora de possíveis rascunhos que um Ser Superior utilizou em Sua aquarela criadora.

Qual é, portanto, o ato divino de gênese, a mais pura demonstração de arbítrio criador a dar origem a esse livro? Por que, dentre tantas opções, iniciei essa conversa buscando razões, justificativas para algo tão aparentemente óbvio? Não seria mais fácil revelar detalhes técnicos, dados objetivos, ou, ainda, apelar para o aveludado “era uma vez”?

Simples. Porque esse livro já teve vários inícios, todos rapidamente apagados da memória do computador, por não representarem o que minha alma busca incessantemente: recolhimento de fragmentos e reminiscências, ao longo de um percurso repleto de cores, amores e dores. Dentro do recolhimento feito em anos e anos de vivência pude, finalmente, colocar num papel toda a incandescente flâmula de experimentação, em vários níveis, do caminho no Sagrado Feminino.

Fui de um ceticismo cego até a mais pura demonstração de misoginia travestida de paganismo proselitista, coberto de dogmas, para mergulhar em mim e na intensidade do que significa o viver a Arte, e não reproduzi-la em receitas ritualísticas.

Por isso, não tenho pretensão de recolher almas, ceifar séquitos, ou, ainda, retirar das livrarias cifras mercadológicas. Também não tenho a menor intenção de fazer um tratado em auto-ajuda, talvez porque não saiba, ainda, o que “auto” e “ajuda” poderiam significar para outra pessoa, que não para mim! Muito menos almejo virar autora de um best seller, pois meu propósito, até aqui, é muito mais simples: escrever para quem, de alguma forma, sente-se identificado com as marcas em meu caminho.

Portanto, se você estiver esperando uma fórmula completa e fechada de acesso à felicidade - miraculosa anestesia para as desventuras de todas as almas perdidas - aconselho a fechar imediatamente essas páginas: esses escritos não servem para você, pois não quero ou posso ajudá-lo. Meu compromisso limita-se a repartir a curiosidade que envolve a mente para algumas questões sobre a vida, os mitos e os discursos que estão em nossas vidas há tempos e que tentaram, a todo custo, aniquilar a sacralidade do feminino.

No caminho de lembranças dessa vida, aportei no dia 27 de março de 1973, próximo a Mabon, tendo como ascendente Áries, Sol neste mesmo signo, na casa 12, para onde vai também minha Vênus, também em Áries.
Desde cedo ouvia minha querida mãe numa mágica conversa com a
s plantas e os animais, percebendo na intrínseca conexão com a Natureza o engate para um revelador mundo sistêmico de reciprocidade e implicações mútuas de causa e efeito, tal qual intuiu Fritjof Capra em sua vasta bibliografia.

Percebo e vivencio o Sagrado Feminino como herança do que foi violentamente retirado pelo sopro conquistador de um astuto poder misógino, mas que foi salvo, de alguma maneira, pela transmissão hereditária de práticas, transformadas em histórias, mitos e fábulas.

Também partilho a idéia que o pensamento avassalador guiou o Império Romano ao aniquilamento das antigas culturas antigas, estando também presente no decorrer de todo o processo de monopólio de conhecimento produzido até a Idade Média, encerrando tudo em seus monastérios e encaminhando os questionadores às chamas das fogueiras.

Eis o motivo essencial da ligação entre o resgate da Antiga Religião e a contestação de uma estrutura de poder intolerante, violento e perseguidor, já que este trouxe, ao longo de nosso passado histórico e espiritual, inúmeras demonstrações de mentiras e impropriedades que precisam ser desnudadas no terceiro milênio, sob pena de continuarmos na ignorância e no preconceito.

Faz sentido, agora, a ausência de pretensão quanto ao dogma? Busco reformular em minha mente sucateada de posturas, os pensamentos e as valorações da vida e da realidade, num suceder geracional que se preocupa em pesquisar suas origens. Esse tem sido meu caminho: a busca de uma identidade, a partir das reminiscências gravadas do inconsciente coletivo para minha parcela de existência.

Sempre permaneci um pouco alheia àquilo que se definiu como “realidade” , pois além de ser filha única e ter construído um mundo excêntrico e particular, apreciava viver isolada de meus colegas na escola, pois as brincadeiras não me interessavam muito. Gostava de brincar com alquimia e magia, enquanto a meninada ficava na clássica “queimada”.

O contato com o universo simbólico mágico veio cedo. Minha avó, a matriarca do clã, levava-me para brincar com umas coleguinhas na casa de uma vizinha como uma vida muito, muito peculiar. Logo na entrada da casa, havia um corredor, embaixo de um túnel de plantas, uma espécie de caramanchão.

O jardim de dona Maju tinha uma coletânea das mais belas e diversificadas plantas e flores, todas com um colorido espetacular, completado por anões de louça no centro. Eu achava o máximo, principalmente por não ver a chata da Branca de Neve por lá!

A porta de entrada da casa ostentava um sino dos ventos a tilintar, anunciando o interior de um aquecido lar, algo tão surpreendente, que as lembranças ainda agora me são nítidas, mesmo depois de 30 anos já passados! Basta fechar os olhos para a cena retornar ao meu coração com nitidez solar.

Ao fundo havia uma sala de jantar, separada do restante do ambiente por uma cortina de miçangas de conchinhas. A parede desta sala era feita de pedra, encerrando, logo atrás, uma lareira a ostentar um grande corno de cervo! Ai, ai, são descrições que nunca esquecerei.

Ah, e tinha mais! Desta sala partia uma porta lateral que desembocava num mini-jardim com musgos, plantas, trepadeiras e um sapo deitado próximo a uma escadinha que nos levava para uma laje, para tomar sol.

Deleitava-me neste imenso palácio de poder com meus amiguinhos, em brincadeiras que não poderiam ser diferentes do ambiente, pois viajávamos para outros mundos, sentindo e enxergando realidades que adulto algum seria capaz de entender.

Estávamos, num momento, na Grécia, dançando com Terpsícore, a semideusa – ou musa - grega da dança; em outro, numa fazenda. Nossas bicicletas de rodinhas eram motos, cavalos, naves espaciais. A casa era um portal dimensional que nos levava para terras longínquas, cujo retorno somente era possível quando nossas avós chamavam-nos para as refeições. Como explicar esse toque inventivo? Mágica.

Tudo isso era pactuado com minha adorável mãe, pois, afinal, era ela quem mais me estimulava nessa vida. Sou-lhe muito grata por ter me proporcionado uma infância livre, e uma vida igualmente livre, por meio da conscientização quanto às responsabilidades!

Pois bem. Você acredita que ela até me vestiu de Princesa? Em pleno Ostara! Lembro-me da fantasia: uma saia de tule branco, com apliques de fores coloridas, feitas por ela, de papel crepom. Na cabeça, um adorno com essas mesmas flores. Achei legal, pois todo mundo vestido da fadinha e eu, super diferente, de Princesa da Primavera!

Poderia gastar ainda mais páginas falando sobre todas essas histórias que servem de fundamentação da minha herança, mas acho que o livro não teria mais espaço para outros assuntos igualmente interessantes. Eis o motivo pelo qual falarei logo do download aos dezesseis anos, que fez com que eu me voltasse para a Arte.

Havia, sem êxito, tentado freqüentar cultos e reuniões de algumas religiões, vindo a insatisfação com a ausência de respostas e o simplório maniqueísmo de se dividir tudo e todos em conceitos tão banais de “bem” e “mal” , catálogos perigosos e eugenésicos, ambos definidores do destino de quem é rotulado.

Um belo dia estava a contemplar uma agenda presenteada por um amigo egípcio de minha mãe, quando fui arrebatada por uma tremenda vontade de escrever. Quando terminei, simplesmente havia registrado a estrutura de um coven completo, composto por graus e hierarquia: primeira sacerdotisa, segunda sacerdotisa, sacerdote, rainha e rei!

Decidi, então, chamar minhas vizinhas para iniciarmos nossa sociedade secreta! Claro que não deu certo, pois as jovens meninas acharam minhas idéias muito malucas, e acabaram não dando qualquer credibilidade. Hoje, depois de muito tempo, vim a compreender que aquele toque do Universo foi direcionado apenas para mim, não havendo qualquer sentido para outras pessoas. Segui, então, sozinha, o trilhar.

Tempos depois, fui aprovada no vestibular de Física, pois desejava ser astrofísica e contemplar os astros e a Lua. Na Universidade, meu pensamento voou longe.

Penso ter cursado o suficiente da Física para descobrir em Albert Einstein um grande Iniciado, em Fritjof Capra um vanguardista e em David Bohn um revolucionário. Quando percebi outros vôos possíveis, mudei para o Direito. Pôxa, você poderia dizer, o que tem a ver o Direito com a Física?
Ah, por favor! Não é à toa que tudo que tem sido até aqui exposto veio de toda uma história de vida pregressa essencialmente mágica! Não desejo ficar explicando em termos lógico-racionais o que está além deste véu de ilusão que insistimos em colocar em nossas frontes!

É o sentir que verdadeiramente importa. Sentir com cada elemento que compõe nossa imensa cadeia interacional, tanto em nível subatômico, com, também, em termos cosmogônicos!

Vivencio hoje a prática solitária, pois minha querida mãe reside em outra cidade. Tentei participar de grupos, ou, ainda, de encontros em torno de egrégoras , celebrando a Lua Cheia, mas minha veia lupina sempre me encaminhou para o retiro e recolhimento.

Cheguei a conhecer alguns grupos interessantes, com pessoas adoráveis, mas nunca permaneci muito tempo em coletividade, porque a sensibilidade em relação ao Sagrado veio apenas a partir do exato instante em que vivenciei a experiência sozinha, ouvindo a vibração de cada partícula do meu corpo.
Sinto o caminho solitário como uma via muito interessante de senda conectiva aos mistérios da Natureza e do Saber.

Não afirmo isso porque me encontro na solitude, mas por extrair do aprendizado por tentativa e erro a necessidade de escutar os anseios do coração, pois a alma canta melhor na calmaria do espírito que foca sua essência. Dessa maneira, não é de fora para dentro que se revelam os mistérios antigos, mas, antes, da pulsação do que vem do fundo de nossa natureza que o Universo se revela.

Não seria prepotente de afirmar que o caminho é assim, parecido com uma experiência no laboratório do Dr. Maluco, porque não tomo a Natureza como objeto de estudo num sistema em que o controle dos dados está ao meu jugo! Ao contrário, neste cenário, antes da pesquisa exógena, o que procurei fazer foi construir as bases do caminho, a partir da auto-reflexão integrada ao Todo. A Natureza? Mestra, claro.
Resumindo: não conheço a verdade, não gosto de estruturar uma sistematização do pensamento, não obrigarei os leitores a seguir meus ritmos e ritos, pois a consciência quanto ao arbítrio e à manipulação impedem-me de agir de outra maneira.

Apenas desejo uma boa leitura – que pode ser feita na varanda ou em outro lugar aprazível, com uma boa xícara de chocolate quente com canela e cravo!!! O Sagrado Feminino e a bruxaria são o extraordinário contido nas singelas minúcias da vida, o pedaço mágico soterrado nos aspectos abscônditos do inconsciente primitivo de um mundo que está carente de contato com a Natureza de que é parte integrante.

Neste sentido, peguei meus diários sagrados e escrevi tudo que experimentei e vivenciei dentro do caminho em que sempre estive. O resultado está disposto nas páginas seguintes, que espero serem de grande valia para os que procuram respostas.

Assim, a solitude é apenas aparente, porque advém, logo a seguir, a profusão da completude, que é exatamente a (re)conexão ao Universo, eterno berço de nossas trajetórias!

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Levantando vôo para a sacralidade do Feminino


Uma das maneiras de vivenciar o Sagrado Feminino manifesta-se na relação dialética de experimentação da sacralidade por meio de uma inconsciente negação do feminino, contemplando e reconhecendo, cada um, dentro de si, a misoginia reproduzida durante séculos e séculos de dominação masculinista. Afinal, somos maravilhosas Deusas nutridoras, e, justamente por isso, somos cingidas em carne, por marcantes e profundas feridas abertas pelo patriarcado devastador que insistimos alimentar em algum ponto longínquo da alma!

Esse é o primeiro susto: olhar para o exterior a partir da lambida de nossas feridas mais internas, pois o mundo, sozinho, não nos fere, a menos que tenhamos a afinidade reativa com a chaga externa. É simples afinidade, atração, causa e efeito newtoniano ou, ainda, de proximidade quântica!

Porém, como bem sabemos, é mais simples, fácil e indolor lançar no outro o peso de nossas dores, pois, quando fazemos isso, desviamos o foco das atenções e esquecemos, um pouco, do problema, ao invés de buscar as profundas marcas dentro de nós. Afinal, ninguém gosta de sentir dor: sentir dor simplesmente... Dói.

Toda grande Deusa nutridora e misógina possui, em algum momento, um referencial masculino também misógino de onde retira o modelo a superar, numa contínua relação de amor e ódio. Ausência paterna em momentos essenciais, presença castradora na repressão que pode beirar violência psíquica e física; figura forte e marcante da mãe que tudo faz pela prole: eis a receita para um futuro de encontros com espelhos misóginos.
Não tenho a menor vergonha de afirmar que o primeiro foco de atração da misoginia e do afastamento do sagrado reside em mim! Torna-se, agora, mais fácil perceber a razão pela qual falei em afastar o Sagrado Feminino, para, depois, aproximar-me dele?

Dessa maneira, não acho que devamos culpar os elementais, os elementos, as configurações cósmicas e planetárias, ou, ainda Brighit, Danu, Macha, Cerridwen, Morrighu, Oghma ou Dagda, por aquilo que é simplesmente a construção de um caminho, um caminho reproduzido no ataque ao feminino.

Não, simplesmente não cabe isso aqui, pois, se coubesse, o caminho já teria um fim sem, ao menos, começar, diante de um discurso muito mais compatível com a culpabilidade judaico-cristã do que em relação à busca do Sagrado Feminino. A transposição para o Sagrado não é feita a partir da atribuição dos percalços aos deuses, mas, antes, do reconhecimento que somos divindades seguindo, cada qual e interdependentes, na opção de nossas escolhas.

Depois de trilhar tanto o caminho do achava ser o sagrado, dentro das condições que meu lar doméstico possibilitava, parti, enfim, para a socialização no caminho da Grande Mãe. De início, tímida, reticente em relação à escolha, mas, antes de tudo, disposta a cair e levantar. Depois de tanto vivenciar, cansei de observar as tradições, os rituais e as contemplações divinais a partir de uma mera transposição judaico-cristã para o caminho da Deusa. Acho até que briguei com Ela, depois de ter rompido com Deus.

Em muitos momentos em alguns dos covens que visitei achei estar em uma missa, ou, ainda, em um culto, repleto dos mesmos dogmas de uma vida inteira. Hoje tenho cautela em observar na estrutura de qualquer tipo de poder a exata medida da revelação de um Cronos castrador, que devora seus filhos para que esses não ousem questionar.

Talvez seja teimosia, mas penso que em nível de humanidade, o exercício de poder supõe, em vários níveis, limitação do outro. Por isso a prática de bruxaria esteve - ao longo do passado histórico ocidental - relacionada à hierarquia familiar, já que era realizada dentro de casa e, mais precisamente, à beira do caldeirão borbulhante, repleto de receitas mágicas. É muito forte a relação de poder na Grande Arte, pois deriva do núcleo de poder familiar. Como, então, vivenciar o Sagrado, com a cautela de observar o poder e suas implicações?

Simples, observando que o percurso e seus limites somente podem, ao final, ser escolhidos por quem está seguindo, caindo, levantando e, sobretudo, vivenciando, não podendo ser imposto, de fora para dentro, sob pena de se perder o foco da identidade divina e sagrada.

Nos vários grupos que freqüentei, observei fenômenos curiosos, como os chamamentos da Deusa para resolver os mesmo problemas que o Deus cristão resolvia, percebendo assim, a mesma castração milenar, com uma formatação apenas reformulada. Óbvio que a maior das mazelas humanas não poderia deixar de ser o coração e a necessidade de preenchimento da carência, pois nunca vi tantos rituais para atração de relacionamentos, amores, maridos e noivos, numa demonstração de completo desespero ante a solidão.

Nesse interessante caminho de desventuras com a Grande Mãe, minha alma desistiu um pouco e saiu de férias, porque, no auge da sincronicidade, vibrei internamente a atração de relacionamentos altamente misóginos, castradores, destruidores da sensibilidade que sempre habitou meu invólucro. O mais interessante foi a seqüência entre eles, porque, a cada relacionamento, a agressão que eu imprimia a minha alma aumentava, devastando os pedaços ainda intocados da minha sacralidade.

E quando mais eu me relacionava com a misoginia, mais a Grande Mãe era procurada fora de mim, na interação com os rituais, covens e pessoas. Eu não tinha noção do preço existencial pesado eu haveria de pagar pela busca externa do que haveria de encontrar, muito tempo depois, dentro de mim. Mas, talvez, meu caminho também não seria escrito se eu não experimentasse tantas sensações que hoje entendo agregarem minha alma de maneira bem tranqüila. Com algumas seqüelas, mas, enfim, serenamente.

A perda do Sagrado começa a partir do momento em que nos esquecemos (ou em que não mais sabemos) que a Deusa habita em nós, deixando nossa identidade divina de lado, para, em nome da aceitação pelo outro, agregarmos valores e tomá-los como imutáveis.

Para mim, esse caminho de “esquecimento da Deusa” começou em doses homeopáticas quando observava que os namorados não gostavam muito das minhas unhas pintadas de vinho - quase preto – dos meus anéis volumosos nos dedos, das saias rodadas, dos incensos, além, claro, das conversas com os animais e as plantas, ou, ainda, do cabelo ruivo Lilith, já que o imaginário popular misógino passa pela candura do amaciamento da escova progressiva e da clareza dos cabelos louros angelicais da submissa Eva intercostal (não estou criticando a “lourice”, mas a motivação submissa que leva as pessoas a pintar o cabelo por outro motivo que não satisfação própria).

Tudo isso chama a atenção de quem não está nessa linha de freqüência: enquanto eu era Lilith, a egrégora de força assustava os namorados. E, durante os relacionamentos - os três mais impactantes e misóginos relacionamentos de toda minha existência nesse plano terrestre – a tônica era a mesma: eu iniciava o relacionamento sendo a Deusa encarnada, mas, depois, cedia, transmutando-me para algo que, longe de ser eu, era um modelo construído pelo outro, um Gollum em busca do anel de poder.

Dentro disso, condicionava-me a fazer tudo que não queria: agredia meu cabelo, pintava de outra cor que não a que apreciava, comprava roupas de outros estilos, saí para lugares que não tinham conexão com meus interesses. Tudo em nome do “grande amor” encantado, embalado pelas histórias da princesa adormecida, encantada pela bruxa má e acordada pelo príncipe com um beijo cinematográfico e... insosso. Argh!

Senti num dos últimos relacionamentos minha alma sair de férias, decidida a não retornar tão cedo. Aham, férias, do tipo: “Ei, não estou gostando do que você está fazendo comigo e, sem diálogo, não dá! Quando você falar comigo e me escutar mais voltarei! Tchau, vou para Lemúria!”

Sim, às vezes penso que ante toda a agressão, minha centelha divinal pediu um “tempo” para minha personalidade, ausentando-se em prolongadas férias de um ano e quatro meses. É a única explicação, apesar de ter pensado na possibilidade de ingresso em um coma profundo do espírito, que deixou meu corpo vagando por aí como um verdadeiro farrapo.

Por isso me vi negando o Sagrado Feminino em mim para, depois, voltar a dar as mãos no grande passeio cósmico com a Grande Mãe! Antes de tais experiências não trazia ou acreditava na certeza de vivenciar a sacralidade feminina, muito menos de internalizá-la naturalmente. Vi-me praticando, ritualizando e mantrando sem a menor convicção e, dentro disso, falando para o silêncio do vazio em meu coração, um vazio de tristeza, já que, por óbvio, a Deusa não estava viva dentro de mim. Ela era um espectro de deidade, uma fórmula buscada fora de mim e que me dava uma ilusória sensação de segurança. Mas ao menor sinal de perigo, a fortaleza ruía e meu castelo “sólido” mostrava-se feito de areia fina e volúvel ao menor sopro de uma leve brisa.

Foi num dia 15 de março... Diante do espelho que a Deusa reservou para mim – o então companheiro de jornada – vi a chama flamulante da Grande Mãe reacendendo a força vital da legítima guerreira Boudicca que sempre esteve aqui, lutando e vivendo - no contraponto entre força e poesia – diante dos abalos da vida.

Naquela noite de prenúncio de Outono vi no outro refletido em mim a força do martelo androcêntrico, que fere, julga e tenta matar a liberdade na equiparação entre homens e mulheres independentes, seres autônomos e interdependentes. Foram muitas as referências na discussão daquela noite, mas as guardo silenciosas dentro de mim porque isso propiciou o retorno maestral da minha alma que estava em férias.

Isso é bem óbvio para os que lêem nas entrelinhas. Falar sobre sacralidade feminina e seus atributos inerentes adentra os aspectos dolorosos contidos nos momentos históricos de negação do aspecto divinal da mulher. Aliás, antes disso, passa também pela discussão sobre gênero feminino, em termos de construção cultural, histórica, religiosa ou, ainda, condição determinada biologicamente.

Prefiro falar no Sagrado longe dos bancos universitários, porque a discussão “científica” retira a poesia da Sacralidade Feminina. A racionalidade pós-moderna, nesse sentido, é bem chata, pois atinge como um punhal afiado, o movimento poético e mitológico da vivência da divinização da mulher. A “ciência” que me perdoe, mas a poesia é a linguagem da alma, essencial para transpor a frieza da razão!

Por fim, de tudo isso até aqui, hoje sinto, penso, acho e respiro a idéia que embala minha vida, meus estudos, meu viver: toda busca do Sagrado Feminino passa pela perda da identidade com o sagrado feminino, começando nos lares artificialmente patriarcais, repleto de preconceitos e limitações da alma feminina.

Aliás, toda mulher guarda em suas entranhas o filete de DNA histórico misógino, por conta da força com que tal discurso destruidor povoou o imaginário, desde os contos de fadas de princesas adormecidas, salvas pelos príncipes saltitantes, até os condicionamentos em níveis mais sutis, a exemplo das mensagens dos programas de televisão, anestésicos de um feminino contundente e reprodutores de um feminino amordaçado.

Como sair disso? Aceitando a Deusa, mesmo que seja, num primeiro momento, por meio da sua negação, porque, ao final, nessa dialética, o caminho é vivenciado, sempre, de uma forma, ou de outra. Quando nos dispomos a negar o que trazemos incrustado no coração, deparando-nos com nossa sombra, aproximamo-nos dela, envolvemos a Deusa Negra com um caloroso abraço e, daí, tudo se dissipa e recolhemos os fragmentos para a recomposição de nossa alma, plena, intacta. Firme, forte, poderosa e plena. Essa é a maior das invocações... Firme...Forte...Poderosa...Plena! Hey ho!

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Macha: a deusa celta dos cavalos

Embalava-me na rede da varanda, contemplando o rosáceo céu de um pôr-do-sol típico de cerrado, quando, num desses súbitos relances que a memória astral traz ao coração, veio à tona o momento em que montei a cavalo, pela primeira vez, aos quatro anos.


Foi em uma estância da família no Sul do país, localizada bem no coração do pampa, onde moramos por dois anos. A proximidade com a Natureza veio cedo em minha vida, porque passei parte dela observando a tosa das ovelhas, ou, ainda, brincando com galinhas, gansos e patos. Por conta de toda essa afinidade com Dana desenvolveu-se em nosso clã grande paixão e respeito devocional por cavalos, que reinavam soberanos nos campos verdes cobertos pelo fino trigo dourado que dançava ao som do Minuano .

O nome da minha amiga era Tobiana: alva como a mais pura nuvem despretensiosa, a égua era um doce, mesmo ciente de todo seu poder. Quando me aproximava dela, Tobiana, imponente, deixava-se acarinhar, roçando seu focinho em minhas mãos e repartindo comigo um torrão de açúcar.

Enquanto galopávamos, o cuidado com que a amiga me conduzia trazia segurança e conforto, pois, no auge das passadas largas – que deixavam para trás as serras que se preparavam para o inverno - a maciez do galopar denunciava a proteção com que ela me cercava. Jamais esqueci os momentos maravilhosos que passei ao lado dela, pois sentia ali uma forte amizade, que me acompanhou por muitos e muitos anos!

Hoje percebo – e sou muito grata à amiga gentil – as lições que a convivência com Tobiana trouxe para mim. A maior delas, talvez, seja o respeito à Soberania Sagrada, atributo que um cavalo ostenta como nenhum outro ser, e que, não raro, é tão esquecido por nós, Mulheres maravilhosas de Anu! Tobiana foi, é e sempre será - no universo da roda de minha vida - a expressão maior de desprendimento e liberdade devotada aos mistérios da Natureza reinante, fluindo na memória como a brisa forte do Minuano a percorrer, de ponta a ponta, os melódicos pastos do Sul.

Com essa lembrança ainda bem vívida, gostaria de compartilhar a bela história de Macha, a Deusa-Rainha celta dos cavalos: uma narrativa repleta de ensinamentos para todos nós, já que envolve amor, cumplicidade, Soberania, confiança e poder.

No meio das andanças pela mitologia celta irlandesa, Macha desponta como uma complexa Deusa, a começar pelo fato do Leabhar Gábala Éireann apontar uma tripla identidade na Rainha eqüina. Isso, sem deixar de mencionar o fato de ser Macha componente essencial de outra “lista tríplice” de entidades míticas, Mórrígan e Badb, confirmando o significado do triskle para a cultura celta, em termos de respeito ao simbolismo da Trindade (vida-morte-vida) anteriormente mencionada.

Eis, portanto, uma entidade complexa, dotada de múltiplas características e egrégoras contidas nas três personalidades, arquetípicas: a “primeira” Macha é a esposa do invasor Nemed, herói descrito no Lebor Gabála; a “segunda”, conhecida como Mong Ruadh (cabelos ruivos), é a viúva de um rei de Ulster, viajou para a Província rival de Connacht disfarçada de lebre. A “terceira” traz um deleite especial: é a história da própria Deusa encarnada que desposou Crunniuc Mac Agnomain.

Eis o mito...

Em um passado remoto, cuja beleza é transmitida por gerações e gerações que atravessam o ciclo dos tempos, viveu na Irlanda setentrional Crunniuc Mac Agnomain, um rico senhor de terras, pai de quatro filhos desolado pela morte da esposa. A vida, para ele, havia perdido muito do sentido, do colorido, e - sobretudo para um celta - da poesia.

Com o vazio ocupando o lugar do coração pulsátil da alma enamorada de outrora, Crunniuc deixou à míngua suas terras e sua morada: parte do gado definhou e morreu, quase toda a plantação secou e quedou estéril e o antigo lar do casal passou a abrigar apenas uma fantasmagórica sombra do que foi, em algum longínquo momento, o espelho da luz e do amor que embalava o jovem casal.

Em um final de tarde - quando o Sol acena um adeus descomprometido - Crunniuc, sentado em frente à sua casa, observou a aproximação da figura de uma formosa mulher, despontando no horizonte e estampando os céus com suas voluptuosas curvas. O agricultor já não conseguia mais discernir se a luz que vinha por trás da mulher era um feixe reticente do astro-Rei, ou se era o maravilhoso cabelo vermelho que adornava, em cachos, a cintura da maravilhosa figura: não importava, porque, ao final, sentia em seu peito – ora, quem diria! Enamorado outra vez! - o retumbante pulsar da paixão.

A exuberante mulher silenciosamente se aproximou de Crunniuc, selando a comunicação com o vazio das palavras: a ternura e o sentimento eram, ali, naquele momento, a linguagem entre eles. Ela adentrou o lar e, numa familiaridade fora do comum, imediatamente começou a colocar tudo na ordem em que se encontrava antes, quando ali ainda habitava uma alma feminina.

Com muita calma, paciência e humildade, a mulher dirigiu-se até o canto da cozinha, pegou a vassoura que ali se prostrava coberta pelo pó da falta de uso – e começou a limpar o local. Varreu, varreu, varreu e, de tanto varrer, baniu todo o passado que insistia em assombrar a alma solitária de Crunniuc.

Depois de tudo limpo, brilhante e revigorado, a bela ruiva acendeu o coração da casa e preparou o mais suculento jantar nunca antes degustado na Terra de Ulster. Crunniuc se fartava, ainda sem entender direito o que estava acontecendo. Satisfeito após o banquete de rei, Crunniuc deixou-se conduzir pela mulher até o quarto. Ele se deitou na cama e a mulher, após dar uma volta completa em torno da cama, selou, ao final, com Crunniuc, o encontro sagrado da deusa com o mortal.

Crunniuc prosperou como nunca... Os campos verdejavam ao som da melodia harmoniosa que a mulher entoava em seus cantos ancestrais. O gado, outrora magro e estéril, agora reproduzia o que a bela ruiva trouxera àquele homem: o esplendor da fecundidade, presente na barriga proeminente de cada animal das terras de Crunniuc. O império de sombras e trevas, enfim, cedeu espaço à luminosidade que cingia a mulher e tudo que ela tocava.

A roda do ano girou na espiral do tempo de Crunniuc e, com isso, a felicidade se estabeleceu em cada pedaço de chão naquela morada entre-mundos. Ele nunca indagou da formosa mulher sua origem, bem como jamais questionou o que ela fazia ali. Apenas amou. Amou e confiou naquela silenciosa mulher, depositando ali seu nobre coração. Com isso, foi feliz, fez-se feliz, sentiu-se feliz e, coroando a felicidade, eis que a formosa mulher dos cabelos cor-de-fogo trouxe a Lua para seu ventre, brindando Crunniuc com a alegria de, dali a nove ciclos de lunação, ser pai.

Algum tempo depois, boas novas chegaram ao reino de Ulster, pois o rei Conchobar convidara todos para um festejo no Condado de Armagh. Crunniuc prontamente respondeu ao chamado, sendo advertido por sua mulher: “Você falará sobre nós durante as festividades e isso trará infortúnio para nossa morada. Não vá.” O fazendeiro insistiu - “Não proferirei uma só palavra” e, com isso, vestiu seu mais belo traje e se dirigiu ao festival.

Chegando lá, Crunniuc admirou-se diante da fartura e da riqueza coroando o refinado cântico dos bardos do Rei Conchobar. Contente por estar ali, Crunniuc, sem perceber, ficou embriagado. Ao escutar uma estrofe do trovador a respeito da velocidade dos cavalos do monarca – “Nunca antes foram vistos cavalos como esses. Não há em toda Irlanda animais mais rápidos que os cavalos do rei!” – Crunniuc antecipou-se e afirmou: “Minha esposa é mais rápida!” e, com essas palavras saindo ainda intrépidas de sua boca, foi levado à presença do rei.

“Prendam-no e tragam à minha presença a esposa, para que confirme o que esse homem acabou de dizer”- ordenou Conchobar aos mensageiros, que rapidamente dirigiram-se à casa de Crunniuc, encontrando a esposa no estágio final de gestação. “Ele falou levianamente” – afirmou a mulher – “Como podem ver, não posso ir com vocês porque estou prestes a dar à luz”, explicou aos mensageiros. “Se a senhora não vier conosco seu marido será um homem morto” – advertiu um dos mensageiros. Ouvindo isso, a esposa de Crunniuc não teve escolha: buscou seu casaco e foi ter com o Rei do Ulster.

Chegando ao festival, a jovem senhora de cabelos ruivos foi um espetáculo à parte, por conta da proeminência de seu ventre. Gargalhadas encheram o local de sons estrondosos, que assustaram a esposa de Crunniuc. Constrangida, humilhada e ameaçada, ela suplicou: “Não posso correr nesse estado! Os senhores devem ter mãe, por favor, tenham clemência!”. Conchobar, impiedoso, desprezou completamente o pedido desesperado da mulher, ordenando aos soldados que trouxessem os cavalos, bem como Crunniuc, para que assistisse à corrida.

Já sentindo as dores do parto, a mulher colocou-se em posição de corrida e, tão logo foi dada a largada, não foi difícil para ela sair na dianteira, mantendo essa posição até o final da corrida: Crunniuc estava, com isso, salvo da morte iminente.

Logo que cruzou a linha de chegada, a esposa de Crunniuc entoou um lacerante grito de dor, ouvido por todos no Ulster, colocando-se em trabalho de parto e dando à luz gêmeos. Ainda entorpecida pela dor, a mulher reuniu suas forças, voltando-se para todos, em altos brados: “Desse dia em diante, durante cinco dias e quatro noites , por nove gerações, nos momentos em que todos os guerreiros do Ulster mais precisarem de suas forças, todos serão cometidos pelas mesmas dores de meu parto , pois Eu sou Macha, filha de Sainrith Mac Imaith , e para enaltecer meu nome, esse lugar será chamado, para sempre, de Émain Macha ”.

Dizendo isso, a Deusa retirou-se do local, levando seus filhos e deixando todos os convidados atônitos com a revelação de sua identidade. Crunniuc nunca mais viu a Deusa ou os filhos, voltando, desolado, para suas terras, que nunca mais, a partir daquele momento, seriam prósperas como outrora foram, quando Macha lá habitava, trazendo luz e prosperidade ao lar e ao coração do fazendeiro.

Referências bibliográficas:

BIERLEIN, J. F. Mitos Paralelos. Trad. Pedro Ribeiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
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CLÈMENT, Catherine, KRISTEVA, Julia. O feminino e o sagrado. Trad. Rachel Gutierrez. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
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HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de Jana Torrano. Edição bilíngüe. São Paulo: Iluminuras, 1991.
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QUINTINO, Claudio Crow. O livro da mitologia celta: vivenciando os Deuses e as Deusas Ancestrais. São Paulo: Hi-Brasil, 2002.
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VARANDAS, Angélica. Mitos e lendas celtas na Irlanda. Lisboa: Gráfica Europam, 2006.

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Morrighan: a incompreendida Deusa Celta do Viver e do Morrer


As deidades celtas estão longe, muito longe daquele maniqueísmo cosmogônico construído no discurso do Bem e do Mal, pois não existem Deuses e Deusas “puristas”, que personifiquem apenas um “lado” desse tratado dialético de unilateralidades com que parte das tradições religiosas e filosóficas cataloga o mundo e sela o destino de seus habitantes, enviando para os confins do mundo (limite de Hades, Inferno etc.) aqueles que ousam contrariar a ordem.
Nesse sentido, a mitologia celta mostra-se caótica, libertária e contestadora, porque não se propõe a reproduzir uma percepção de moral higienizante e angelical, típica da predileção dual com que boa parte das tradições religiosas se fundamenta.
As deusas celtas, em particular, são o retrato fiel da complexidade humana tangida pela imortalidade, materializando a consistência existencial que nos coloca, no aqui e no agora, a questionar nossas condutas e atitudes, em cima de uma “reta razão” que somente poderia acenar para um, dentre os dois caminhos a seguir: céu e inferno, bem e mal, na despótica dualidade política do ideário teológico ocidental que empunha armas para a destruição do outro.
Passamos boa parte do tempo na preocupação em conduzir nossas vidas de acordo com princípios éticos absolutos, que levam à medonha escolha entre dois caminhos, como se fosse muito simples, fácil e cômodo o despojamento de todo rol de informações imemoriais que trazemos de outras existências, onde o bem e o mal nem sempre são visíveis.
Sempre existe uma metáfora para a estrada bifurcada nas escolhas que selam nosso futuro para cima ou para baixo de algum lugar que-não-sabemos-qual-dentro-do-critério-dual (de propósito todo esse grande hífen).
Quando me deparei com Morrighan, a incompreendida Deusa do Viver e do Morrer, desisti de negar em mim a densidade e a complexidade presentes na alma e gravadas com sangue, suor e lágrimas: paguei, muitas e muitas vezes, um preço existencial muito grande em negar em mim a ira, a raiva, bem como o desejo e o amor, por achar que os sentimentos podem ser segregados em compartimentos estanques de nossas almas e que, assim, não se comunicam. Engano, porque a racionalidade catalogadora não consegue lidar com o vendaval emocional que, ao invés de segregar, unifica, as polarizações.
Morrighan é a contramão da dualidade puritana, porque encerra em sua fecunda personalidade a complexidade e a riqueza de uma entidade que se compõe de unidade, profundidade e latência.
Acredito, inclusive, que a polarização em torno da expressão Morte-Vida também seja, ao final, um simples trocadilho semântico que induz ao erro de crermos na existência de situações definidas de mundos (mundo dos vivos, dos mortos) quando, no simbolismo celta, o material e o espiritual constituem a mesma essência, tendo por elo a Natureza e seus mistérios.
Morrighan ama, odeia, fere, cura e mata, colocando, assim, em xeque-mate a compreensão de um mundo dual, em que as “qualidades más” são colocadas embaixo do tapete, enquanto a “suprema bondade” é revelada e enaltecida.
James Mackillop traduz o nome Morrighan (ou Mórrígna) por “great queens”, ou seja, grandes rainhas, no plural, para lembrar da dimensão tríplice da deusa contida na referência trina de Macha, Badb e Morrighan, divindades que irradiam, ao mesmo tempo, fertilidade, soberania e beligerância.
Ao mesmo tempo em que é a amante ardorosa de Dagda e a ptonisa que aparece para Lugh, uma Morrighan contrariada aparece em cena diante da rejeição de Cúchulainn. Mais uma vez, três aspectos distintos aparecendo diante de três heróis celtas, por meio dos encontros mágicos com cada uma das três faces da Grande Rainha.
Aliás, a trindade não é novidade na mitologia celta, porque o três invoca o triquete ou triskle, no simbolismo da perpetuação da roda da vida e da morte (dentro da qual não existe distinção). Isso indica, mais uma vez, como a perspectiva separatista de mundo mantém a ilusão de dualidade, criando a sensação de antagonismos e, a partir daí, alimentando a perspectiva de distinção entre razão e emoção, corpo e mente, homem e mulher, natureza e homem. Ou seja, novamente, nossa interpretação condicionada limitando nossa percepção de mundo, que é uno, holos.
Numa das famosas batalhas contra os Fomoire (especificamente na segunda batalha de Moytura), Morrighan aparece para Lugh, profetizando a vitória mediante a conclamação poética para que o herói tome seu lugar de direito e guie os Tuatha para a guerra.
Como oráculo, Morrighan estabelece, naquele momento, a soberania do conhecimento além-mundo e, revestida de poder, concita o Deus-Sol a chamar para si a tarefa de guiar o povo. Deusa e Deus, ali, compondo a harmonização e a unidade, para lembrar da complementaridade entre gêneros, e não da competitividade.
Em outro episódio, a Grande Rainha une-se sexualmente com Dagda na véspera de Samhain no rio Unshin, em meio aos corpos ensangüentados daqueles que, no dia seguinte, iriam ser mortos em combate. Interessante refletir sobre a percepção oracular e meta-temporal do evento, por conta do encontro se dar num momento “fora-de-tempo”, já que, de fato, a guerra iria ser travada no dia seguinte. Amorosa, a Rainha forneceu ao Deus importantes informações sobre o combate, além de informá-lo que também iria tomar parte na luta.
A história que acho mais intrigante, porém, relaciona Morrighan a Cúchulainn, o herói que despreza a deusa e, assim, atrai sua ira eterna, ao ponto de aguardá-lo ao final da jornada mítica. Reza a lenda que a Rainha enamorou-se do herói, prometendo-lhe o mundo se ele com ela se casasse.
Cúchulainn, porém, no auge de sua determinação guerreira, recusa a oferta, dizendo que “not have time for a woman’s backside” (não tenho tempo para uma traseira de mulher), menosprezando os favores da rainha e, com isso, produzindo sua ira.
Depois disso, Morrighan ainda apareceu, em luta, para o guerreiro, sob a forma de um lobo, uma enguia, de uma novilha vermelha descornada e, por último, de um corvo, que iria aguardar o fim da agonia de um moribundo Cúchulainn. Mais uma vez, a trindade, pois a deusa encarnou três animais de poder para, por último, incorporar o corvo, guardião eterno dos segredos do Além-vida. Detalhe: ela a negou, por três vezes, porque, a cada momento de sua aparição para o jovem, a deusa fora por ele ferida. Mesmo assim, continuou esperando por ele até o final...
O coração possui razões das quais a própria razão desconfia? Não, sei, ao certo, porque, lendo a história da deusa, passo, cada vez mais, a desconfiar que a razão tenha razão, pois acredito que o coração, ao final, detém todos os segredos do mundo. Apenas sei – porque sinto, não porque saiba – que a transcendência da polarização é a chave para a compreensão da mitologia celta, de suas deidades e, para nós, humanos e humanas, mortais, de nossa própria história e jornada.

Referências bibliográficas:
BIERLEIN, J. F. Mitos Paralelos. Trad. Pedro Ribeiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
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