quinta-feira, 16 de junho de 2022

Sair da Matrix: entrar, sair, ficar, permanecer...por onde começar?

Toda época traz a marca de seu momento, seja por estereótipos, modismos, clichês, movimentos ou símbolos que, repletos de significados, são capazes de mudar o comportamento humano e transformar, em certa medida, o mundo.

Woodstock, Rock in RIO, Diretas Já...

Misticismo...esoterismo...cristais, velas, mantras, orações...alimentação orgânica, vegana, pesceteriana, onívora, macrobiótica...mercado de pulgas, de trocas, energia de fluxo, de contribuição, brechós, offgridliving, minimalismo...

Depois que o filme Matrix emergiu como uma espécie de "contracultura" em 1999, a década seguinte firmou um novo paradigma emergente: ruptura, sem precedentes, de uma grande "matrix", econômica, financeira, (geo)(exo)política, religiosa e cultural que trazia, até então, o mundo compactado em uma redoma de comportamentos previsíveis, automáticos e anestesiados. 

Neo e sua trupe nos fizeram enxergar com olhos, cuja musculatura estava atrofiada, um mundo de ilusoriedade que nos aprisionava: a ignorância diante do condicionamento de nossa mente, para que servíssemos de "bateria alcalina" eterna para alimentar a inteligência artificial a quem demos poder ao longo dos anos.

Lembro bem daquela época: o cenário do filme refletia uma boa história digna de ficção científica, pois ainda estávamos no início dessa virada tecnológica sem precedentes. Mas a História (ou história, sabe-se lá se é fake news, rs) tem nos mostrado que Matrix profetizou boa parte das transformações que hoje são corriqueiras e comuns, como videochamada, redes sociais, ensino à distância etc. 

A partir daí, os debates nos meios virtuais convergiram para a danada da "saída ou fuga da Matrix", rendendo livros, séries, entrevistas e muita, muita reflexão no sentido de se buscar, de alguma forma, uma vida mais simples, fora dos aglomerados urbanos de adensamento neurótico, no intuito de encontrar a tão sonhada "paz interior".

Offgrid living, numa tradução bem rasteira, significa viver fora da rede...fora do mainstream (modelo hegemônico) com que o tal sistema passa a "tarrafa" em todos nós (falamos em rede, nada mais metafórico do que a tarrafa arrastada para pegar, aos montes, peixes e crustáceos, sem a menor chance de escapatória). 

Daí vamos para as redes sociais, bem imagéticas, damos "curtidinhas" numa foto aqui, noutra pose ali. 

Fazemos até curso para aprender a vender felicidade...do outro. 

A ludicidade alheia passou a fazer parte do cardápio oferecido nessa quimera de busca imediata de uma felicidade já pronta, em pílulas (de preferência), como válvula de escape para o chamado "mundo real opressor".

Ponto bem positivo dessa virada paradigmática tem sido a busca de jornadas, caminhos e mudanças, a partir do descontentamento com uma realidade que nos é incômoda. Seja meditando, orando, praticando yoga ou tai chi, comendo melhor, dormindo bem, não importa: queremos usufruir desse manjar dos deuses, a todo custo

Daí, o inconveniente: tendo experimentado esse "cadim" de felicidade, como voltar?

Não tem como! 

Por isso, diante de todo esse processo, a saga de Ícaro: vamos "sair da Matrix", com suas milhares de fórmulas mágicas, recitadas pelos gurutubers de plantão, que falam, falam e...falam, mas estão na Matrix ganhando o "pão nosso de cada dia" e cuspindo, literalmente, no prato em que comem...

Não, não se "sai" simplesmente da Matrix, se a consideramos multidimensional, a partir, primeiro, da nossa tridimensionalidade. Lamento desapontar quem achou que eu iria aqui falar que estamos todos salvos...

Uns falam que podemos minimizar seus impactos, outros falam em otimizar. 

Tantos outros falam em "dar nó e usar a Matrix como ela mesma". Mas, em todos os discursos, um ponto comum: permanência da ideia, do símbolo, da latência do que é matricial, ou seja, sistemicamente fechado e com padrões e repetições dentro de um universo de previsibilidade. 

Nesse plano em que se concebe Matrix como uma ideia - e, apropriada como espetáculo, ideOLOGIA - a Matrix está bem, obrigada. Respaldada, ainda, por um macrossistema: financeiro, econômico, educacional, religioso, político e globalizado, cabeças de serpente que, apesar de cortadas, nascem novamente, com algumas pequenas mudanças. Mas substancialmente iguais. 

Por isso me coloco a pensar no caminho que decidi fazer, que foi deixar, um pouco, a paranoia da matriz externa e megalômana que Neo haveria de destruir sendo o salvador, e me concentrar em um microssistema menos pretensioso (mas também complexo): eu

Percebi, então, que o primeiro movimento consiste no despertar mental, desencadeando, aos poucos e em lentos passos, uma desconstrução de padrões e comportamentos, ressignificação de tudo aquilo que guarda identidade com uma mera cultura de replicação robótica e inconsciente de crenças limitantes, medos, mitos e condicionamentos

Meu mundinho "alternativo" começou, de fato, a ruir, quando descobri que, mesmo no modelo de consumo consciente, vegetarianismo e todos os -ismos, estava, ainda ainda, dentro da caixinha de consumismo, para preencher o vazio existencial da descoberta do vazio existencial do paradigma dominante, de consumo. 

Leitura, leitura, leitura. Terapia alternativa, terapia alternativa, terapia alternativa. Entupindo-me de dados e bits sobre "como sair", cometi o engano de, no processo, chafurdar até o pescoço na Matrix. 

Hein? Simples: um cachorro atrás do seu rabo, infinitamente...

O mundo alternativo também pode refletir a Matrix?

Claro, sempre que, em nome de uma "libertação", pegamos carona nos fluxos, sem nos perceber, durante o processo. 

Sem refletir. 

Não adianta deixar de ir ao shopping e passar a comprar em brechó ou trocar roupa se isso se faz como repetição do padrão de fuga da percepção de si, para virar uma aderência ao externo. 

A ausência de reflexão, aliada ao grande sedutor inconsciente - dinheiro ou fluxo de troca - coloca o mais estereotipado mestre na posição de agente Smith, tal qual o mais mundano dos mundanos (no caso do filme, o Cypher, um dos poucos que, tendo acordado, quis voltar).

Qual a fórmula?

Não sei, porque fórmula, geralmente, é algo que tem um sentido universalista, outra pegadinha da Matrix, universalização em rede...rs

E o caminho não é universal em um primeiro momento, mas pessoal, solitário e desafiador, pois, mesmo estando com alguém, família ou até numa multidão, ao final, somos nós quem vamos seguir a jornada.

Para mim, o processo ainda segue...

Começou na inquietude e na inconveniente sensação de "que algo estava errado", depois foi para, cada vez mais e mais, a busca por me desonerar das bagagens que entupiam meu HD. Depois passou pela consciência de como funciona o corpo, a emoção e a mente, essa, sim, o carro alegórico dos processos de autoengano, na tentativa de pegar atalhos e catalogar tudo e todos. 

Com isso, as oscilações...paz, raiva, amor, desejo, futilidade, desapego, apego...a jornada me trouxe para o mato, a sustentabilidade e, com ela, a redefinição do que era importante em minha vida.

Uma lista de 50 itens virou uma de 30, de 20, depois de 10. 

Aos poucos, na medida em que ia me recolhendo em relação ao que o externo impelia a mim, a coisa foi acontecendo, literalmente, de dentro para fora. Consumismo parando, o ir e vir do passado e futuro foram cedendo espaço para o aqui e o agora.

Passei a desacelerar mais, a me alimentar melhor. A contemplar mais a natureza, as pessoas que amo. A cuidar mais de mim, seja fazendo yoga, seja meditando. 

Silenciando para sentir o recado do Universo (Deus) para mim.

Parei? Acabou? Sou iluminada? Hahaha, longe disso...mas não importa, porque a jornada, embora desconhecida, é profunda e nunca se acaba, e a luz nunca se compacta em definitivo num lugar...

O que acho mais importante, nesse processo, é simplesmente ter fé e acreditar que o caminho, em si mesmo, é a jornada que não tem fim, na eternidade com que nossa alma desafia nosso medo de perecer...

Namastê!




Um comentário:

  1. Acho que nas oscilações emocionais que advém das nossas experiências/programações ou modo como usamos pensamentos para interpretar o "teatro", reside nosso maior desafio individual e coletivo. E assim como você conseguiu com esforço, vontade e tempo, desvendar caminhos para a simplificação/desaceleramento mental e material do viver, acredito que iremos pouco a pouco reencontrando esse caminho. Grato pela reflexão.

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