sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Pranayama: quando respirar é imergir e elevar

Dias atrás passei os olhos em uma reportagem postada em um desses sites internacionais bem conceituados, que replicam o paradigma dominante de ciência causal e determinista: falava em como a "respiração de bebê" poderia ser "benéfica para a saúde", sendo reconhecida ali como até mesmo preferível à respiração curta e torácica. 

Por que, então, ficamos tanto tempo sem essa pérola de validação científica, o bastante para uma notícia como essa trazer assombro e novidade? 

Por que a respiração abdominal, "de repente", explodiu como uma "novidade" terapêutica, quando, no mínimo, mínimo, ela já bem lá é mencionada em textos sagrados e tradicionais do yoga há séculos e séculos? 

Não sei, ao certo...

O fato é que nunca imaginei que iria ler algo assim lá, mas, tomada por uma inerente curiosidade em saber como o assunto seria abordado, arrisquei-me a ler, ficando bem feliz em perceber que, finalmente, a respiração diafragmática ou abdominal (como simplificamos nas práticas de yoga) foi reconhecida em seus inúmeros benefícios à saúde. 

Fiquei ainda mais surpresa ao ler na reportagem a referência a algumas técnicas apropriadas da literatura do yoga e, por conta disso, achei interessante aprofundar aqui um pouco mais o assunto, contextualizando-o na tradição do yoga. 

A respiração é o primeiro ato autônomo que realizamos quando aportamos nesse plano: recém-saídos do calor e do aconchego do útero de nossas mães, somos destacados da proteção de uma redoma que nos conforta e alimenta pelo cordão umbilical para adentrar um mundo totalmente desconhecido, onde o primeiro ato de sobrevivência consiste em sorver o ar e impulsionar internamente esse fluxo mágico.

Por isso a respiração, na literatura indo-védica, tem um significado místico de conexão às esferas celestiais de criação, como se vê no capítulo 4, verso 29 da Bhagavad Gita, que traz a referência expressa, "(...) apane juhvati pranam pranepanam tathapara / pranapanagati ruddhva pranayamaparayanah", traduzido por:

"Outros, tendo suspendido o movimento do prana e do apana, oferecem o prana no apana, assim como o apana no prana, engajados na prática do pranayama" (Barbosa, 2018, p. 95)

Outra tradução interessante está na Bhaktivedanta Database

"Há ainda outros, que estão inclinados ao processo de restrição da respiração para permanecer em transe, eles praticam oferecendo o movimento do alento expirado ao do alento inspirado, e o alento inspirado ao alento expirado, e assim acabam entrando em transe, suspendendo toda a respiração. Outros, restringindo o processo alimentar, oferecem o alento expirado em sacrifício a este mesmo alento.

Nesse sentido, para compreender melhor o pranayama, precisamos ir até a raiz da palavra prana como "força vital universal, uma energia psicofísica vibrante, semelhante ao pneuma dos gregos antigos (Feuerstein, 2005, p. 179), ultrapassando, assim, a mera ideia de sinonímia com "ar" ou "éter", para introduzir um elemento transcendente, presente em todo o Cosmos. 

Com um conteúdo inicialmente relacionado à religiosidade, a exemplo da recitação do Gayatri mantra (Kuvalayananda, 2008, p. 21) e da Bhagavad Gita, o prana e o pranayama se destacam, depois, com uma posição independente no contexto psico-fisiológico que Patanjali lhe confere nos Yoga sutras. 

Georg Feuerstein traz uma tradução a partir do prefixo pra, que indica o movimento contínuo, "respirando", e do radical an, "respirar",  reforçando, assim, o impulso vital e contínuo de energia, que se desenvolve no apâna prâna, a respiração relacionada à metade inferior do corpo, vyâna prâna, que circula em todos os membros, udâna prâna, respiração superior e samâna prâna, localizada na região abdominal. 

A partir dessa noção de prâna como força motriz universal, o pranayama compõe um dos oito angas (membros) do yoga, mencionado em vários textos, sobretudo na literatura de Patanjali, como uma espécie de senda ou caminho óctuplo (Feuerstein, 2005, p. 180).

Pranayama (prāṇāyāma, प्राणायाम do sânscrito) é uma palavra designativa de um movimento: prâna (respiração ou força vital) + âyâma (extensão) (Feuerstein, p. 180), um processo de controle da respiração e, a partir dela, da própria mente em seus estados de inquietude

Com isso, longe de ser um ato meramente mecânico, o pranayama é um dos pilares do processo de experienciação e expansão da consciência para estados mais elevados, por isso sua importância nas práticas de yoga, seja em um momento específico, ou, ainda, na realização ao ásana, ocasião em que harmonizamos (ou "encaixamos" organicamente) a postura à respiração (e não o contrário, como usualmente pode ser feito em exercícios usuais e funcionais). 

Uma das grandes diferenciações, porém, em relação à maneira como enxergamos a respiração no Ocidente e a riqueza consciencial que a prática do pranayama oferta está na importância das retenções no processo respiratório.

Isso porque tendemos a acreditar - até porque respiramos!!!! - que a otimização da respiração está no fluxo de entrada e saída do ar, chamados respectivamente de puruka e recaka na literatura yóguica. 

Somos condicionados, desde cedo, a produzir o fluxo do "inspira e solta" rápido, raso e superficial, que se aloja da traqueia para o centro do tórax, local em que reside a glândula timo (relacionada à expressão do emocional e sua conexão com o sistema imunológico) a receber o impacto dessa afoiteza.

Não seria exagerado afirmar que "alimentamos" nosso timo e coração de ansiedade quando respiramos assim, de forma fragmentada e rápida. Ao invés de produzir serenidade, nossa programação nos leva à manutenção da agitação e da ansiedade.  

Fazemos, então, uma confusão fisiológica enorme, que traz, muitas vezes, sofreguidão e ansiedade, por meio da respiração ofegante e curta, apenas direcionando o ar para o cardíaco ou, quando muito, para a região central do tórax, como náufragos em busca de uma boia de salvação. 

Isso porque é no kumbhaka, a retenção do ar com o abdômen cheio ou, ainda, a permanência sem ar,  o trabalho primoroso de respiração cósmica plenificada, alavancando-nos para estados de consciência diferenciados, ao tempo em que otimiza a capacidade de oxigenação do corpo.

Quando retemos o ar sorvido e deslocado para a região abdominal (puruka), é possível sentir uma pressão interna maior, que permite, por sua vez, ampliação da abertura e permeabilidade dos alvéolos para que a oxigenação se dê e se expanda para o corpo todo, como uma grande e serena onda. 

Esse movimento, quando realizado com foco, disciplina e conhecimento (aliado, por exemplo, à percepção da glândula pineal, ou, especificamente, do ajña chackra), reproduz o sentido de plenificação, trazendo a sensação de completude que nos faz sentir parte de uma realidade extrafísica despojada da percepção e do apego à sensorialidade tridimensional. 

Ao exalar e manter o esvaziamento (recaka), uma vacuidade é experimentada e, com ela, a expansão consciencial, na medida em que, vazio, nosso corpo tem o potencial de ser preenchido com o Todo (inclusive mais oxigênio). 

Esse movimento de ir e vir, tal qual o embalo das ondas do mar, que marca a maior distinção na maneira como ordinariamente vemos a respiração, para o verdadeiro significado do pranayama, razão pela qual respiração e pranayama não são sinônimos.

De fato, a respiração faz parte do pranayama, que envolve, como visto, uma consciência em relação a todo o processo, saindo da mecanicidade para abraçar o significado latente de conexão com o divino. 

Quando experimentamos, aos poucos, com conhecimento da técnica, as retenções, passamos a observar internamente essa "chave" de mudança do sentido do prana no corpo, direcionando-o a locais que demandam maior atenção. 

Um bom começo para realizar essa mudança consiste na modificação do fluxo da respiração: ao inalar, experimente, em 4 profundos tempos , encaminhar o prana para o abdômen, inflando-o como um balão. Depois esvazie o abdômen, sugando o umbigo, também em 4 tempos. 

Aos poucos e com consciência, você pode introduzir o kumbhaka, inalando, retendo, exalando e ficando sem ar, tudo em 4 tempos para cada processo. Em condições usuais, respiramos entre 14 e 20 vezes, mas, com a técnica, é possível aquietar e respirar 1 até 3 ou 4 vezes apenas, aproveitando, assim, o prana dentro de nós. 

Importante, porém, perceber que essa técnica não se destina a produzir um "desafio respiratório", mas um caminho de autoconhecimento. Por isso, fazer o kumbhaka apenas com um sentido egoico, além de não produzir benefícios, pode ser prejudicial para a saúde (desmaio, tontura etc.). 

No caso de dúvida, sempre é bom lembrar do suporte de um instrutor de yoga, ayurveda ou meditação, ou, ainda, alguém que esteja familiarizado com a técnica. 

No mais, basta imergir e se descobrir nesse lindo processo e usufruir dos benefícios para o corpo, o emocional, a mente e o espírito!

Hare Om Tat Sat!!!