segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Cuidando do nosso coração: o desafio de dizer NÃO para as demandas alheias



Já perdi as contas de quantas vezes deixei de realizar algo bom, útil e necessário ao meu crescimento pessoal (no caso, crescimento emocional, mental e espiritual), para administrar demanda alheia que, "supostamente", não poderia esperar!

Aulas de yoga não realizadas, meditação abandonada no meio do caminho, leituras deixadas de lado, atividades ao ar livre que coincidiam com tarefas, almoço em 5 segundos. Má digestão...

Na afoiteza de atender ao outro, esqueci-me de mim, várias e várias vezes, ao longo de vários e vários anos. 

O início é sutil: a gente acha que será "mais valorizada", que está fazendo "algo legal pelo planeta", um esboço de adaptação saudável ou resiliência, em nome do altruísmo que nos elevará à condição de avatares nessa terra.

Contudo, depois vem a armadilha do ego, que inicia um processo de construção de expectativas em cima dessa, que é uma premissa totalmente falsa.

Isso porque, na medida em que vamos cedendo às demandas, sem observar nosso próprio tempo e necessidade de autocuidado, um rolo compressor começa a nos oprimir, e nossa luz vai oscilando e ficando mais pálida.

Quando nos damos conta, adoecemos, porque o corpo, afinal, responde, quando a alma não é ouvida. 

Por que deixamos isso acontecer? Por que nos agredimos tanto? 

O que fazer diante disso? 

Olhando para meus processos de sabotagem, percebi acreditar piamente que meu esforço seria reconhecido pelo outro. Que "os outros irão nos valorizar" e, noutra ocasião, "devolverão a benesse feita". 

Ou, então, dentro de um paradigma espiritualista pingue-pongue (travestido de reciprocidade, carma ou lei de atração), que "somos todos um", que o "divino que habita em mim respeita o momento do divino que habita no outro" (licença poética do namastê meio fora de contexto). 

Que, num dia em que precisarmos, todo mundo entenderá e cederá, porque, de fato, fomos nós quem cedemos.

Diante do silêncio ante nossa ação, vamos perdendo o rumo acreditando na assertiva sedutora que esse "sacrifício não é em vão", quando, de fato, já foi em vão há tempos, porque nos colocou na posição de nos agredir. 

De nos anular ou, pior, nulificar. 

Tudo em nome de um ideal, seja pessoal ou coletivo.

Eis, então, o derradeiro momento de parar, respirar, esvaziar a mente para retomar a consciência do que somos, e não do papel egoico que nos impelimos a realizar, nas várias facetas de nossas atividades.

Passamos a perceber que esse ideal - como tudo para o qual direcionamos motivação, desejo e vontade - nada mais é do que a boa e velha fórmula do velho apego à ilusão. Iludimo-nos todos os dias, concentrando razão e ação em ideais, de modo que a frustração de metas traz decepção e cobrança. 

O outro inconveniente, esse tal ideal

Trata-se do outro (que pode ser uma pessoa, uma instituição, uma ideologia, um projeto etc.) que não está em nossa pele para arcar com o resultado de nossas ações "contra nós mesmos". 

É o outro que "nos suga" e drena até o último filete de nossas energias, deixando apenas um trapo, onde, antes, habitava a plenitude. 

Olhamos no espelho nossas olheiras e percebemos nosso corpo fraco, além da mente dispersa em mil pensamentos e conexões. 

O outro no espelho...

Não, esse outro não está fora de nós

Essa foi a maior lição da minha vida: recolher a tarrafa da responsabilização do coletivo anônimo, ou de um bode expiatório, para esquecer de que sou EU quem está à frente desse processo

Quando passei a falar mais NÃO para esse sabotador interno, o resultado veio logo...Primeiro, o ego passou a cobrar, eu passei a me cobrar resultados, a manifestar síndrome de impostora, a me desvalorizar, a mergulhar no poço. 

No fundo do poço...

Mas quando se chega ao fundo do poço, descobri que só se pode, a partir daí, olhar para cima. E, com isso, cavar mais fundo e se enterrar não é mais opção. 

Escalar rumo aos céus, sim! 

Daí, olhando para as necessidades da minha alma, passei a reconhecer o momento para mim...a falar sonoros NÃOS também para a culpa e sabotagem e, com isso, a falar não para pessoas, projetos, instituições

Para quem quer que seja...

O NÃO passou a ser libertador, porque, de fato, diante dele comecei a perceber que, de fato, as demandas de tempo, ação etc. SÃO DOS OUTROS, não minhas. 

Que não posso ser responsável pela ansiedade alheia ou por todas as desconhecidas variáveis do mundo além do meu umbigo, já que gasto uma energia administrando a minha própria ansiedade, o que já é um saco também (hahahahaha). 

Com isso, passei a ser protagonista de eventos, estabelecendo limites para o mundo afora. O tempo dedicado ao autocuidado e autoconhecimento veio se elongando mais e mais, trazendo plenitude e consciência. 

O tempo para a aula de yoga sem culpa foi se operacionalizando, a meditação foi se desenhando como ritual espontâneo e as atividades lúdicas foram se realizando de forma orgânica e natural.

E o mundo, as pessoas, os demandadores de plantão? 

Continuam em suas trajetórias pessoais de demandas e expectativas não resolvidas. O que não é mais problema meu

Esse é o ponto...seguir adiante, com a espontaneidade do processo interno e se desvincular, desapegar, retirar o peso que as pessoas, coisas e estados das coisas representam em nossas vidas. 

É uma jornada desafiadora...mas, o que, de fato, assim não é nessa vida?

Então que seja e traga crescimento e bem-estar para a alma.

Caso contrário, seremos apenas discos furados repetindo padrões, pelo infinito...






quinta-feira, 16 de junho de 2022

Sair da Matrix: entrar, sair, ficar, permanecer...por onde começar?

Toda época traz a marca de seu momento, seja por estereótipos, modismos, clichês, movimentos ou símbolos que, repletos de significados, são capazes de mudar o comportamento humano e transformar, em certa medida, o mundo.

Woodstock, Rock in RIO, Diretas Já...

Misticismo...esoterismo...cristais, velas, mantras, orações...alimentação orgânica, vegana, pesceteriana, onívora, macrobiótica...mercado de pulgas, de trocas, energia de fluxo, de contribuição, brechós, offgridliving, minimalismo...

Depois que o filme Matrix emergiu como uma espécie de "contracultura" em 1999, a década seguinte firmou um novo paradigma emergente: ruptura, sem precedentes, de uma grande "matrix", econômica, financeira, (geo)(exo)política, religiosa e cultural que trazia, até então, o mundo compactado em uma redoma de comportamentos previsíveis, automáticos e anestesiados. 

Neo e sua trupe nos fizeram enxergar com olhos, cuja musculatura estava atrofiada, um mundo de ilusoriedade que nos aprisionava: a ignorância diante do condicionamento de nossa mente, para que servíssemos de "bateria alcalina" eterna para alimentar a inteligência artificial a quem demos poder ao longo dos anos.

Lembro bem daquela época: o cenário do filme refletia uma boa história digna de ficção científica, pois ainda estávamos no início dessa virada tecnológica sem precedentes. Mas a História (ou história, sabe-se lá se é fake news, rs) tem nos mostrado que Matrix profetizou boa parte das transformações que hoje são corriqueiras e comuns, como videochamada, redes sociais, ensino à distância etc. 

A partir daí, os debates nos meios virtuais convergiram para a danada da "saída ou fuga da Matrix", rendendo livros, séries, entrevistas e muita, muita reflexão no sentido de se buscar, de alguma forma, uma vida mais simples, fora dos aglomerados urbanos de adensamento neurótico, no intuito de encontrar a tão sonhada "paz interior".

Offgrid living, numa tradução bem rasteira, significa viver fora da rede...fora do mainstream (modelo hegemônico) com que o tal sistema passa a "tarrafa" em todos nós (falamos em rede, nada mais metafórico do que a tarrafa arrastada para pegar, aos montes, peixes e crustáceos, sem a menor chance de escapatória). 

Daí vamos para as redes sociais, bem imagéticas, damos "curtidinhas" numa foto aqui, noutra pose ali. 

Fazemos até curso para aprender a vender felicidade...do outro. 

A ludicidade alheia passou a fazer parte do cardápio oferecido nessa quimera de busca imediata de uma felicidade já pronta, em pílulas (de preferência), como válvula de escape para o chamado "mundo real opressor".

Ponto bem positivo dessa virada paradigmática tem sido a busca de jornadas, caminhos e mudanças, a partir do descontentamento com uma realidade que nos é incômoda. Seja meditando, orando, praticando yoga ou tai chi, comendo melhor, dormindo bem, não importa: queremos usufruir desse manjar dos deuses, a todo custo

Daí, o inconveniente: tendo experimentado esse "cadim" de felicidade, como voltar?

Não tem como! 

Por isso, diante de todo esse processo, a saga de Ícaro: vamos "sair da Matrix", com suas milhares de fórmulas mágicas, recitadas pelos gurutubers de plantão, que falam, falam e...falam, mas estão na Matrix ganhando o "pão nosso de cada dia" e cuspindo, literalmente, no prato em que comem...

Não, não se "sai" simplesmente da Matrix, se a consideramos multidimensional, a partir, primeiro, da nossa tridimensionalidade. Lamento desapontar quem achou que eu iria aqui falar que estamos todos salvos...

Uns falam que podemos minimizar seus impactos, outros falam em otimizar. 

Tantos outros falam em "dar nó e usar a Matrix como ela mesma". Mas, em todos os discursos, um ponto comum: permanência da ideia, do símbolo, da latência do que é matricial, ou seja, sistemicamente fechado e com padrões e repetições dentro de um universo de previsibilidade. 

Nesse plano em que se concebe Matrix como uma ideia - e, apropriada como espetáculo, ideOLOGIA - a Matrix está bem, obrigada. Respaldada, ainda, por um macrossistema: financeiro, econômico, educacional, religioso, político e globalizado, cabeças de serpente que, apesar de cortadas, nascem novamente, com algumas pequenas mudanças. Mas substancialmente iguais. 

Por isso me coloco a pensar no caminho que decidi fazer, que foi deixar, um pouco, a paranoia da matriz externa e megalômana que Neo haveria de destruir sendo o salvador, e me concentrar em um microssistema menos pretensioso (mas também complexo): eu

Percebi, então, que o primeiro movimento consiste no despertar mental, desencadeando, aos poucos e em lentos passos, uma desconstrução de padrões e comportamentos, ressignificação de tudo aquilo que guarda identidade com uma mera cultura de replicação robótica e inconsciente de crenças limitantes, medos, mitos e condicionamentos

Meu mundinho "alternativo" começou, de fato, a ruir, quando descobri que, mesmo no modelo de consumo consciente, vegetarianismo e todos os -ismos, estava, ainda ainda, dentro da caixinha de consumismo, para preencher o vazio existencial da descoberta do vazio existencial do paradigma dominante, de consumo. 

Leitura, leitura, leitura. Terapia alternativa, terapia alternativa, terapia alternativa. Entupindo-me de dados e bits sobre "como sair", cometi o engano de, no processo, chafurdar até o pescoço na Matrix. 

Hein? Simples: um cachorro atrás do seu rabo, infinitamente...

O mundo alternativo também pode refletir a Matrix?

Claro, sempre que, em nome de uma "libertação", pegamos carona nos fluxos, sem nos perceber, durante o processo. 

Sem refletir. 

Não adianta deixar de ir ao shopping e passar a comprar em brechó ou trocar roupa se isso se faz como repetição do padrão de fuga da percepção de si, para virar uma aderência ao externo. 

A ausência de reflexão, aliada ao grande sedutor inconsciente - dinheiro ou fluxo de troca - coloca o mais estereotipado mestre na posição de agente Smith, tal qual o mais mundano dos mundanos (no caso do filme, o Cypher, um dos poucos que, tendo acordado, quis voltar).

Qual a fórmula?

Não sei, porque fórmula, geralmente, é algo que tem um sentido universalista, outra pegadinha da Matrix, universalização em rede...rs

E o caminho não é universal em um primeiro momento, mas pessoal, solitário e desafiador, pois, mesmo estando com alguém, família ou até numa multidão, ao final, somos nós quem vamos seguir a jornada.

Para mim, o processo ainda segue...

Começou na inquietude e na inconveniente sensação de "que algo estava errado", depois foi para, cada vez mais e mais, a busca por me desonerar das bagagens que entupiam meu HD. Depois passou pela consciência de como funciona o corpo, a emoção e a mente, essa, sim, o carro alegórico dos processos de autoengano, na tentativa de pegar atalhos e catalogar tudo e todos. 

Com isso, as oscilações...paz, raiva, amor, desejo, futilidade, desapego, apego...a jornada me trouxe para o mato, a sustentabilidade e, com ela, a redefinição do que era importante em minha vida.

Uma lista de 50 itens virou uma de 30, de 20, depois de 10. 

Aos poucos, na medida em que ia me recolhendo em relação ao que o externo impelia a mim, a coisa foi acontecendo, literalmente, de dentro para fora. Consumismo parando, o ir e vir do passado e futuro foram cedendo espaço para o aqui e o agora.

Passei a desacelerar mais, a me alimentar melhor. A contemplar mais a natureza, as pessoas que amo. A cuidar mais de mim, seja fazendo yoga, seja meditando. 

Silenciando para sentir o recado do Universo (Deus) para mim.

Parei? Acabou? Sou iluminada? Hahaha, longe disso...mas não importa, porque a jornada, embora desconhecida, é profunda e nunca se acaba, e a luz nunca se compacta em definitivo num lugar...

O que acho mais importante, nesse processo, é simplesmente ter fé e acreditar que o caminho, em si mesmo, é a jornada que não tem fim, na eternidade com que nossa alma desafia nosso medo de perecer...

Namastê!




quarta-feira, 1 de junho de 2022

Observando "limites" na prática do yoga: o ir e vir da mente na superação da zona de conforto

Quando olhamos as bonitas fotos no instagram, quase sempre vemos postagens mostrando posturas difíceis e mirabolantes, executadas com perfeição por praticantes e instrutores de yoga. [chamei "postura", e não asana, porque sinto que a mera performance executada em frente à câmera, para fins expositivos, sem o contexto amplo e profundo do que o yoga significa, não é asana].

Admiramos tamanha plasticidade, beleza e desenvoltura, não é mesmo?

Pensamos "uau, como alguém consegue fazer isso?"

Ou, ainda, naquela fração de tempo em que a estima é abalada, achamos que "nunca vou fazer isso" e "yoga é para quem tem flexibilidade". 

Ângulo da luz, bonitas paisagens, malha bonita e corpo "sarado", elementos que se somam para a construção de uma "selfie" que reflita a postura compartilhada na rede social para divulgar o fantástico trabalho que o yoga faz em nossas vidas, por meio dos benefícios que essa senda milenar traz para a jornada do praticante. 

Diante desse contexto lindo de contemplação da arte, podemos cair na tentação de olhar apenas a perfeição...do outro. 

Afinal, ela nos seduz e cativa, por conta de tantos componentes imagéticos que são acionados por meio do registro virtual, trazendo um desejo de alcançar, a todo custo, aquele ideal de execução do asana.

"Treinamos", praticamos, exigimos de nós a excelência, tudo no intuito de, um dia, podermos executar o asana de forma minimamente parecida ao ideal que "printamos" em nosso HD mental, graças ao bombardeamento de imagens que assolam o mundo das hashtags.

Se não atentarmos para esse processo sutil, entramos numa espiral de condicionamento da mente, do emocional e do corpo rumo à extrema pressão, podendo resultar no esgotamento e na ocorrência de lesões que, quase sempre, deixam-nos de molho por dias e até meses. 

Como lidar com essa linha tênue entre se desafiar, de forma saudável, e de se agredir por pura projeção de uma egotrip

Essa pergunta traz muitas reflexões, permitindo, ali, na prática no tapetinho, que a articulação entre alguns dos princípios (membros) do yoga - os angas - contribua com o desnudamento dessa linha tênue entre a prática desapegada e a ostensividade nociva da obsessão pela realização do asana.

Hoje, em especial, falaremos sobre alguns yamas (preceitos éticos, de observância interna, que se projeta na conduta do praticante, em relação a si, com o outro e, por que não dizer, com a vida)

Quando estamos no tapetinho, geralmente ouvimos a instrução para não praticar violência e observar nossos limites naquele momento, componente básico de ahiṁsāum preceito genérico que não apenas se relaciona ao aspecto qualitativamente físico, mas a absolutamente tudo que diz respeito à agressividade, refletindo, em nossa jornada no dia-a-dia, a modulação de nossas conduta, em relação aos outros e a nós mesmos.

Como ele se materializa? Como se respeitar na hora da prática?

Na observação de si, como aquele terceiro que se olha, percebendo alguma alteração, dor ou dessintonia potencializada que, mais adiante, com a prática, pode se plasmar de forma mais direta e contundente. Assim, de início, perceber uma câimbra, luxação, uma dor latente ou até um leve desconforto já nos acena maior zelo em observar, dentro da dinâmica da prática, o que podemos fazer e em qual medida. 

E quando estamos no asana

A estabilidade confortável nele já sugere o conforto. Muitas vezes existem variações do asana que podem ser trabalhados na prática. Esse momento é o desafio para o praticante: ir ou ficar na "zona de conforto"?

Já me lesionei muitas vezes por trazer justamente para esse momento zero esse pensamento, essa dualidade: sair da zona de conforto e me arriscar? Outras vezes, minha mente ia mais longe, chegando a querer prever riscos (parecendo seguradora cotando seguro de acidente). 

Esse é momento para o desapego dessa dicotomia, pois ela, vindo da razão (julgamento, valoração, crítica) reafirma a tensão e faz transparecer o ator por trás dessa inquietude: ego...

Como resolver, então? 

"Resolver"? 

Não se trata de resolução (de novo, a razão dando pitaco), mas do isolamento da percepção, com a realização do asana. Se fluir e a entrada se der nessa dinâmica de leveza, sem que desfoquemos para avaliar ou racionalizar "perdas e ganhos", já obtemos o resultado. 

Importante lembrar que, algumas vezes, nosso corpo imanta barreiras ou travas, por cautela em relação à exposição ao risco (receio): uma espécie de congelamento ou tensão que enrijece musculatura, articulações, tudo fica "duro". 

Creio ser o momento propício para aprofundar o pranayama, investindo no ir e vir da inalação (pūraka) e exalação (rechaka), sobretudo nessa última, ocasião em que podemos nos recolher e entrar no asana, se esse assim o pedir (cada imersão tem uma dinâmica de respiração, impactando, assim, o pranayama). 

Nesse mergulho, satya reluz como verdade maior que, aliada ao desapego (aparigraha), traz o fluxo para a simples realização, e não para a busca de resultados. Essa verdade interior manifestada se revela por trás da máscara do "eu vou de qualquer jeito", esse "ardil" que damos em nós mesmos para nos "forçar" a fazer o asana, por puro apego ao sucesso e à obsessão de superação de limites.

Quando comecei a realizar esse caminho, um mundo novo se abriu. Isso não quer dizer que, volta e meia, eu não saia me lesionando por aí, em face da teimosia egoica, mas que, dentro dela e, para além dela, hoje consigo perceber melhor todo esse processo, a partir do tapetinho e, como lição, também fora dele. 

Uma leveza sem medida ou limite, potencializadora do bem-estar que o yoga proporciona em nossa vidas.

Namastê!




terça-feira, 12 de abril de 2022

Mantras, os sons de Deus e a força da criação



Quando a palavra "mantra" vem à mente, logo pensamos no famoso Om, cuja sonoridade nos embala para um estado de concentração, oração ou meditação, conforme nossa convicção e percepção a respeito do que significa essa vocalização. 

Quase todos os livros sagrados das mais antigas culturas do mundo convergem para uma ideia: a de que o Cosmos foi elaborado a partir de luz e som (o que, de fato, não diverge tanto assim do que desenvolve a ciência a respeito do tema). 

Com isso, em muitas dessas culturas, a prática de cânticos, o entoar de mantras e partículas sonoras, bem como a busca de alinhamentos lunares e solares foram a maneira de se conectarem mais ao divino, a Deus.

No yoga, a vocalização dos mantras cumpre essa função de conexão. 

Mantra, do sânscrito man (pensar) + tra (instrumentalidade), constitui um fonema ou repertório de frases, aparentemente ininteligíveis ao ego condicionado na língua-mãe de cada um de nós, mas com signo, significado e significante antigos, presentes no akasha ou repositório universal (uma espécie de dicionário linguístico da humanidade, em seu aspecto individual). 

Para Feuerstein, o fonema pode, ou não, ter um sentido comunicável, destinando-se a nos levar para a contemplação, a partir de um sentido iniciático, no qual a sílaba ou o fonema só adquire sentido após ser compartilhada com o discípulo pelo mestre (guru).

Assim, longe de ser algo despretensioso, o mantra agrega, para a cultura indo-védica, na sua origem, esse aspecto iniciático de conhecimento transmitido numa linhagem, tradição e disciplina próprias. 

Porém, para além de um dogma iniciático e hermético, tenho, por experiência, que a função do mantra (maneira de pensar, forma de pensar) se destina, em nível consciente, a chamar a atenção do ego vacilante e falante (pensante), enquanto que em nível subconsciente, de produzir gatilhos para essa semântica sagrada, que não é entendida pelo ego, mas acessada pelo Eu Superior, em nível inconsciente

É entre o subconsciente e inconsciente que opera a maravilhosa atividade mântrica. 

Quando entoado com a convicção de sua atividade, ele produz profundas transformações, pois reverbera no ambiente, bem como adentra as camadas e os subníveis energéticos mais profundos (lembrando que, ao final, somos poeiras subatômicas ordenadas e plasmadas no material, mas fundamentalmente energia pulsante), produzindo ondas que anestesiam a mente pela repetição do som no qual está aderida a mensagem.

Assim, quando mantramos, nossa mente não reconhece a língua ou o significado estrito do mantra, ficando inquieta e, até mesmo, insana, tentando "quebrar a cabeça para tentar descobrir o que se fala e, com isso, como sempre, produzir um "mar de sabotagens" ("eu não tive tempo", "eu tenho que fazer isso", "eu não consigo" etc.)

Quanto menor a frequência de onda, o que se percebe, por exemplo, no mantra acima, entoado guturalmente e com timbre grave, mais se acessa a camada de unidade mais básica do humano. 

Os monges tibetanos, por exemplo, revezam-se entoando OM ou AUM-OM (sons primordiais) para descondicionar os 3 primeiros chackras, que são, em nível de desenvolvimento espiritual coletivo, os que demandam mais atenção, porque nos ligam ou conectam ao material, mundano, tridimensional, com tudo que diz respeito a ele enquanto alicerçado nessa 3D. 

Na meditação cristã, os hesicastas reverberam "Jesus, Filho de Deus", ou "Maranata" (vem, Senhor). 

Qualquer que seja a tradição, na medida em que se alavancam outros estados de consciência, bem como frequências mais amplas, amplia-se para os demais chackras todo esse trabalho que se inicia na inalação de prana, bem como na movimentação das cordas vocais e se alastra para os vórtices e pontos de energia (chackras e nadis). 

Qual a diferença entre um mantra em sânscrito e tibetano para uma oração em português ou inglês (ou a língua original da pessoa)? 

A diferença é a sofisticação do ego, que se desenvolve também em nível intelectual (aliás, intelectualidade, vaidade e ego caminham, muitas vezes, juntas no não desperto) e, durante a entonação na língua conhecida, começa e enviar e desenvolver pensamentos que, como um fluxo, desviam de rota a finalidade conectiva. 

Por isso que palavras têm poder, tanto de nos elevar, mas, também, de nos fazer decair. 

A escolha sempre é nossa, seja em nível de ego ou alma.

Na prática de yoga, por intermédio da puja, entoamos mantras com o propósito pedagógico de adestrar o ego, para que, durante a prática, tenhamos consciência do que ele promove de sabotagem específica do tapetinho, que se irradia para a vida, se deixarmos ("isso é difícil para mim, é impossível fazer isso, não dou conta, vou levar muito tempo para fazer, sou muito duro, não tenho flexibilidade"). 

Assim como podemos escolher o que podemos degustar para nutrir nosso corpo, podemos escolher o que falar, pensar e ouvir, para que a alma também seja nutrida de afeto, amor, autoaceitação e coragem para os desafios que se apresentam durante nossa jornada. 

Gratidão!


sexta-feira, 4 de março de 2022

Meditação cristã: quando o preenchimento e o esvaziamento se completam numa ascese renovada

Quando tomamos contato com o tema meditação, quase sempre vem à mente aquela imagem de alguém posicionado no asana de lótus, de olhos fechados, pernas cruzadas, em silêncio, absorto pela percepção do Em-si que se observa, num método próprio da literatura oriental, mais especificamente asiática, incorporada no Ocidente pela apropriação feita nos últimos 50 anos.

Com vertentes das mais variadas (guiada, vipassana, zazen, transcendental, hindu etc.), até desembocar na "invenção" ocidental efetuada pelo mindfulness (que nada mais é do que pratyahara, dharana e pitadas de dhyana), meditar sempre foi sinônimo de introspecção e recolhimento, estados geralmente relacionados à prática oriental de esvaziamento da mente ou, então, de desapego do fluxo de pensamentos para o preenchimento com o Todo.

Eis a razão pela qual o silêncio constitui o impulso vital dessa dinâmica,  incompatível, a rigor,com a inquietude ocidental, sempre embalada pela racionalidade e que se ocupa muito mais de especular e teorizar a espiritualidade e as técnicas de meditação para o convencimento racional de seu significado e, depois disso, algum sentido de execução, sempre na ideia de transcendência e apartação.  

Tempos atrás, contudo, um conhecido me apresentou a meditação cristã, o que chamou bastante minha atenção, sobretudo porque, àquela época, eu havia acabado de me converter e ser batizada, o que gerou inicial reflexão de minha parte sobre o que seria "adequado" dentro do que estava a apreender e aprender (acabei descobrindo, nessa jornada incrível, que não acabou, que o conteúdo, a motivação e o impulso de Deus é mais relevante do que fazer um checklist inquisitorial sobre o que se permite ou proíbe).

Em contraste, isso se somou aos meus preconceitos em relação ao "purismo" da meditação no Oriente, pois achei paradoxal e contraditória a existência de uma meditação cristã, sobretudo diante da ideia de "esvaziamento" da mente, já que tal referência (cristã) me alojava para o acionamento de conteúdos que seriam incompatíveis com o vazio, a exemplo do acionamento do nome de Jesus para ancorar a meditação.

Assim, em princípio, tudo aquilo que não fosse técnica advinda do budismo, hinduísmo e demais nichos orientais não era, para mim, reconhecida como meditação, mas, por outro lado, não sentia afinidade pelos usuais métodos de uma liturgia e oratória cristã. 

Qual não foi minha surpresa, ao acessar a literatura indicada pelo conhecido, iniciando pelo livro Relatos de um Peregrino Russo e pela Pequena Filocalia, ambos trazendo experiências concretas de monges e homens santos da Igreja Ortodoxa do Oriente (grega, russa, eslava), um universo até então desconhecido para mim (já que vim de um lar materno católico e, portanto, mais acostumada com Roma).

Deparei-me com um verdadeiro mergulho na senda meditativa cristã oriental, que parte, quase sempre, de jornadas espirituais que visam proximidade com Deus, por experiência real e concreta (ou seja, imanente,) de quem se lança a essa intentada. 

Nesse sentido, acabei me desalojando um pouco mais do modelo de prece ou repetição contínua e automática de palavras, para retomar a conhecida introspecção, na qual a respiração é um dos vetores principais a se cultivarem a quietude e o silêncio (para o sistema do yoga, pranayama). 

Isso porque, para o hesicasmo, a ideia de Deus não é meramente transcendente, uma ascese dualista donde se parte dessa cisão entre o solitário meditador e o Criador, mas, para além disso, uma conexão imanente na qual se vivencia a experiência de se estar conectado a Deus pelo coração, órgão que é bastante acionado na meditação cristã, por meio da chamada oração do coração, também chamada de oração perpétua de Jesus

A ancoragem, assim, na meditação cristã hesicasta (em homenagem aos monges hesicastas), é feita por intermédio da entonação da oração perpétua de Jesus em suas variações ("Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende piedade de mim, pecadora", "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus", "Senhor Jesus"), ao tempo em que se inala e exala.

A ideia, aqui, é trazer, pela inalação, o conteúdo latente e a vibração que o nome de Cristo (Jesus) para o coração, para ali alojá-Lo, de modo a reverberar, depois, para todo o corpo do meditador essa energia em torno do nome de Jesus. Na exalação, quando me assumo pecadora imperfeita (mas sem o stress de me sentir condenada e culpada), percebo e sinto o sopro de Deus-Filho como redenção. 

A oração perpétua começa em nível verbal, porque primeiro escutamos, depois ouvimos, agregando o aprendizado do conteúdo semântico e, por trás dele, o latente, que circunda o santo nome de Jesus). 

Depois, em nível mental, porque na recorrência da entonação, acionamos um gatilho subconsciencial que depura a mente dos ruídos que "atrapalham" o foco e a concentração. 

E, por último, o que os monges hesicastas chamam de alojamento no coração, que é inscrever essa frase no coração, trazendo Jesus para ele, o que me acendeu o lampejo do encontro de culturas, já que tal técnica muito se assemelha ao próprio percurso do yoga em alguns de seus elementos (asana, pranayama, pratyahara, dharana, dhyana e samadhi).

Sem deixar de mencionar a importância, para a meditação cristã, da hesiquia, ou seja, do recolhimento solitário, o que é marca diferenciada do processo, já que estamos acostumados com a reunião para oração. 

Não se trata de processo excludente, mas, ao contrário, outra e mais uma forma de vivenciar Deus em nossa jornada, uma percepção de que nossa mente é nosso maior sabotador em relação a experiência empírica com Deus, sobretudo quando confundimos animismo e catarse com presença de Deus e fé

Por isso a autopercepção, longe de ser uma ancoragem na egoidade, é o reconhecimento de como o ego pode nos desviar do propósito, induzindo-nos a acreditar que estamos experienciando algo que, de fato, deriva mais do autoengano idiossincrático do que do encontro com Deus. 

Traumas, recalques, dores não clarificadas, ideias, valores e referências do inconsciente coletivo, tudo isso, no campo da mente e do emocional, pode trazer a falsa percepção de encontro com Deus, o que é bem evidenciado no processo meditativo, quando começamos a naturalmente observar essas estruturas durante a vigília. 

Outro momento dentro da meditação cristã de extrema importância diz respeito ao alojamento ou assentamento da mente nas coisas de Deus, não no sentido de mea culpa, expiação, comiseração no sentido punitivo a espelhar uma planilha de erros "durante o dia".

Aqui se trata da projeção do nosso universo motivacional na ideia de Deus e, com essa ideia, tudo se elabora, a partir de se invocar a oração perpétua de Jesus, que constitui a mais possante egrégora, pelo emblema que Cristo traz em razão do fato de ser Filho de Deus. 

Independentemente das frases acima reproduzidas marcarem espaços políticos de poder religioso nas diferentes concepções ou tradições (romana católica, ortodoxa, protestante, pentecostal e neopentecostal etc.), o que importa, aqui, é considerar o nome de Jesus como o aglutinador dessa energia acessada pelo meditador, motivo pelo qual é um ato solitário e pessoal ("tende piedade de MIM") que nos aproxima afetuosamente de Jesus... 

Tive a oportunidade de fazer um vídeo a respeito desses dois livros, compartilhando aqui com vocês. Espero que possa ser útil para quem está descobrindo Deus e Jesus em sua jornada.