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Nos domingos frugais em que me entrego à celebração do ócio contemplativo, costumo fazer "pesquisas de campo" em torno do tema - estética e feminino. Para obter sucesso em minha intentada, assisto toda sorte de programas voltados ao público feminino, sobretudo no Lifetime e na GNT, canais usualmente destinados à "valorização da mulher".
Sinceramente? Cada vez que ligo a televisão, fico mais confusa. Talvez não saiba bem o que o feminino quer dizer, ou, na pior hipótese, o que esses canais querem, ao final, transmitir como mensagem de uma vida e uma estética politicamente corretas. Sinto-me desconcertada diante do que pode ser uma mensagem equivocada a ser transmitida, em massa, para mulheres ávidas por aceitação e amor, dispostas, assim, a entrar em uma montanha-russa emocional que acaba colocando em xeque-mate toda e qualquer tentativa de emancipação da mulher dos estereótipos androcêntricos e machistas.
Pérolas da vez nesta semana: primeiro, um programa chamado Dormindo com meu estilista, no qual os maridos saem a campo para as compras das roupas que acreditam revitalizar suas parceiras, visivelmente cansadas pela tarefa da maternidade e administração do lar (não seria mais fácil entender que o problema não está na roupa, mas na unilateralidade das funções atribuídas para a mulher? Ou seja, ao invés de se comprarem roupas, simplesmente dividirem-se as tarefas? Enfim...).
A história da semana aborda uma jovem dona-de-casa de 29 anos - já aparentando 40 - que emagreceu vertiginosamente depois do segundo filho, o bastante para fazer com que eu suspeitasse de anorexia, já que, ao menos na frente das câmeras, ela não conseguia se enxergar macérrima (esquálida).
Sempre achava gorda, dado o trauma da aquisição de quilos na segunda gestação [abrindo uma brecha aqui para comentar o que acredito ser um desvio de perspectiva, pois algumas mulheres atribuem o nome "gordura" ao que é, por excelência, a protuberância da barriga oriunda da gravidez. Isso me leva a refletir se o problema está realmente no excesso de peso ou em não se aceitar, durante a gravidez, na inerente mudança de corpo].
Detentora de uma visível baixa autoestima, recusava-se a acreditar no seu marido, que sempre lhe dizia ser linda e maravilhosa, vestindo moletons, roupas folgadas e jeans. Cara lavada, rabo de cavalo, óculos: acima de tudo, esquálida. Esquálida, mas com a autoimagem de uma pessoa obesa.
U$7.500 foram entregues para o marido que, sem eira nem beira, começou um périplo de compras do que entendia serem roupas mais adequadas à esposa. Depois de muita aquisição entendida pela hostess do programa como "nada a ver", ele revitaliza o guarda-roupa da esposa, incrementando-o com tons das cores mais alegres, roupas mais justas e sapatos diferentes dos tênis que ela costumava calçar.
Ela, então, toma um banho de loja, indo ao salão, cortando e delineando o cabelo, fazendo maquiagem e, ao final, apresentando-se para toda a família com uma das roupas novas. Sente-se bem, animada e revitalizada, pois, agora, recém-saída da concha de timidez e encobrimento na qual se colocou depois de dar à luz, voltou à tona como uma verdadeira Fênix, satisfazendo a seu marido-estilista, que desejava a volta da "esposa de antes".
Toda a família a legitima, soltando um uníssono "Ohhhhhh" quando, enfim, a jovem esposa aporta no horizonte da passarela, vestida de vermelho, cabelos na chapinha, batom rubro.
Esse é o cenário...
Não estou discutindo se usar amarelo ou azul tornam uma pessoa mais bonita ou feia. Muito menos estou apregoando uma nova "queima de sutiãs", achando que a moça tinha mais que andar de moleton (até porque detesto moleston e tênis, que me lembram esteticamente o uniforme impessoal dos colégios em que estudei).
O que chamou minha atenção, contudo, foi o pragmatismo com que se procura, nesse programa, anestesiar o que estruturalmente é o epicentro, ao meu ver, de todo o mergulho na sombra: a insistência de manutenção de estereótipos estéticos, a partir dos quais se nega beleza e validade ao que não está de acordo com o paradigma.
Saltos altos, roupas justas, muito batom e transformação externa. Esse é o retrato do modelo de beleza que se cobra da mulher moderna, ainda que, no caso da moça, vá se ficar à beira de um fogão (ela havia largado o emprego em nome do lar e dos filhos, o velho e bom discurso dos papeis dicotomizados segundo a dobradinha sexo/gênero).
Tudo o que não estiver nesse molde não é bonito. Repele-se como a uma chaga, pretendendo-se, com isso, formular uma homogeneização, em larga escala, de todas as mulheres do mundo, negando, assim, as diferenças e enaltecendo uma pasteurização de todas a partir dos modelos além-Equador.
O outro programa - brasileiro, diga-se de passagem - chama-se Troca de Estilos e envolve duas amigas que, diante das câmeras, fazem acusações veladas e recíprocas, em relação ao que cada uma mais detesta no estilo da outra.
Se eu não estivesse ouvindo a hostess falar em português, diria estar diante de mais um programa anglo-americano, pois os modelos são exatamente os mesmos daqueles transmitidos na Terra do Tio Sam e na Oropa. Padrão, enfim. Mas, neste caso, enganei-me, pois o programa é brasileiro mesmo e, dentro do meu objetivo de pesquisar, arrisquei-me a continuar no canal.
O desafio da semana: uma amiga, a "despojada" - segundo valoração tanto da cara-metade, quanto dos profissionais de moda que prestam consultoria para o programa - e a "patricinha", estereótipo atribuído pela amiga, mas não validado pelos mesmos profissionais.
A despojada tinha um estilo de vestir alternativo para os padrões de moda transmitidos e defendidos no programa: era adepta das compras em feirinhas hippies, detestava saltos, abusava das saias coloridas. Um primor de simplicidade, coroada pelos acessórios artesanais brasileiros (colares de contas de açaí, pulseiras de palha) a realçar a beleza "cara limpa", já que a jovem, como ela mesma disse, detestava maquiagem.
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Sua amiga "patricinha", por outro lado, era um outdoor ambulante (visão da amiga despojada), o oposto da amiga: o que se via em seu visual era a poluição das marcas e das etiquetas que sobrepujavam o estilo do qual não abria mão para as baladas cariocas.
Tudo nela realçava a indústria famigerada do consumo, desde a típica bolsa famosa a tiracolo (no antebraço), passando pelo salto alto (extremamente alto, de arrepiar literalmente a coluna) e a pesada maquiagem, que me fez questionar como ela poderia fazer para retirá-la todos os dias (com martelo e formão?).
Hipoteticamente, cada uma delas haveria de incorporar um pouco das observações que faziam em relação uma à outra. Mas o que vi, sinceramente, foi a compactação da amiga desencanada em uma forma de bolo que nada tinha a ver, ao final, não só com o estilo de roupa, mas de vida.
A mulher que adquiria a roupa da feirinha - fora do circuito das grandes indústrias que se prevalecem do trabalho escravo ou da exploração de mão-de-obra barata, contratada em países periféricos - cedeu espaço para a chamada "hippie chique", ou seja, aquela pessoa que aparenta ter um estilo alternativo, mas que se alimenta da moda paradigmática, fomentando a roda vida do atentado contínuo à sustentabilidade.
Sumiu a garota preocupada com o meio ambiente, e, no lugar dela, apareceu uma com petróleo na boca (lembrando que alguns batons têm o mineral na composição ou, ainda, testam o produto em animais, para que as boquinhas das mulheres não tenham reações alérgicas).
Até em cima de um salto colocaram a moça, sempre ovacionada pela equipe de experts a reproduzir - com a autoridade que lhes confere a pesada indústria da moda - os anseios das indústrias, mais interessadas em...vender.
A patricinha, por seu turno, cedeu o bastante para retirar as etiquetas da visibilidade das roupas, encobrindo-as no que é a mera repetição do estereótipo, em outras bases: virou hipster, feliz da vida, crendo piamente que sua atitude acarretará a mudança dos padrões climáticos da Natureza em hecatombe nuclear.
Moral da história: todo mundo saiu feliz. Uma, a consciente, anestesiou-se com o torpor da moda em decomposição, cedendo em nome da amizade. A outra, achando mesmo ter saído da Matrix, trocou seis por meia dúzia.
E a espectadora?
Bom, um pouco de senso crítico e canja de galinha não fazem mal à prudência: moda é uma questão de se sentir bem internamente, estando, ou não, no paradigma dominante. O que importa é a consciência do próprio valor, pois, a partir dela, a estima se eleva e nos tornamos pessoas mais imunes aos ilusórios tentáculos da indústria da moda: mais reflexão e menos marca.
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