segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Cuidando do nosso coração: o desafio de dizer NÃO para as demandas alheias



Já perdi as contas de quantas vezes deixei de realizar algo bom, útil e necessário ao meu crescimento pessoal (no caso, crescimento emocional, mental e espiritual), para administrar demanda alheia que, "supostamente", não poderia esperar!

Aulas de yoga não realizadas, meditação abandonada no meio do caminho, leituras deixadas de lado, atividades ao ar livre que coincidiam com tarefas, almoço em 5 segundos. Má digestão...

Na afoiteza de atender ao outro, esqueci-me de mim, várias e várias vezes, ao longo de vários e vários anos. 

O início é sutil: a gente acha que será "mais valorizada", que está fazendo "algo legal pelo planeta", um esboço de adaptação saudável ou resiliência, em nome do altruísmo que nos elevará à condição de avatares nessa terra.

Contudo, depois vem a armadilha do ego, que inicia um processo de construção de expectativas em cima dessa, que é uma premissa totalmente falsa.

Isso porque, na medida em que vamos cedendo às demandas, sem observar nosso próprio tempo e necessidade de autocuidado, um rolo compressor começa a nos oprimir, e nossa luz vai oscilando e ficando mais pálida.

Quando nos damos conta, adoecemos, porque o corpo, afinal, responde, quando a alma não é ouvida. 

Por que deixamos isso acontecer? Por que nos agredimos tanto? 

O que fazer diante disso? 

Olhando para meus processos de sabotagem, percebi acreditar piamente que meu esforço seria reconhecido pelo outro. Que "os outros irão nos valorizar" e, noutra ocasião, "devolverão a benesse feita". 

Ou, então, dentro de um paradigma espiritualista pingue-pongue (travestido de reciprocidade, carma ou lei de atração), que "somos todos um", que o "divino que habita em mim respeita o momento do divino que habita no outro" (licença poética do namastê meio fora de contexto). 

Que, num dia em que precisarmos, todo mundo entenderá e cederá, porque, de fato, fomos nós quem cedemos.

Diante do silêncio ante nossa ação, vamos perdendo o rumo acreditando na assertiva sedutora que esse "sacrifício não é em vão", quando, de fato, já foi em vão há tempos, porque nos colocou na posição de nos agredir. 

De nos anular ou, pior, nulificar. 

Tudo em nome de um ideal, seja pessoal ou coletivo.

Eis, então, o derradeiro momento de parar, respirar, esvaziar a mente para retomar a consciência do que somos, e não do papel egoico que nos impelimos a realizar, nas várias facetas de nossas atividades.

Passamos a perceber que esse ideal - como tudo para o qual direcionamos motivação, desejo e vontade - nada mais é do que a boa e velha fórmula do velho apego à ilusão. Iludimo-nos todos os dias, concentrando razão e ação em ideais, de modo que a frustração de metas traz decepção e cobrança. 

O outro inconveniente, esse tal ideal

Trata-se do outro (que pode ser uma pessoa, uma instituição, uma ideologia, um projeto etc.) que não está em nossa pele para arcar com o resultado de nossas ações "contra nós mesmos". 

É o outro que "nos suga" e drena até o último filete de nossas energias, deixando apenas um trapo, onde, antes, habitava a plenitude. 

Olhamos no espelho nossas olheiras e percebemos nosso corpo fraco, além da mente dispersa em mil pensamentos e conexões. 

O outro no espelho...

Não, esse outro não está fora de nós

Essa foi a maior lição da minha vida: recolher a tarrafa da responsabilização do coletivo anônimo, ou de um bode expiatório, para esquecer de que sou EU quem está à frente desse processo

Quando passei a falar mais NÃO para esse sabotador interno, o resultado veio logo...Primeiro, o ego passou a cobrar, eu passei a me cobrar resultados, a manifestar síndrome de impostora, a me desvalorizar, a mergulhar no poço. 

No fundo do poço...

Mas quando se chega ao fundo do poço, descobri que só se pode, a partir daí, olhar para cima. E, com isso, cavar mais fundo e se enterrar não é mais opção. 

Escalar rumo aos céus, sim! 

Daí, olhando para as necessidades da minha alma, passei a reconhecer o momento para mim...a falar sonoros NÃOS também para a culpa e sabotagem e, com isso, a falar não para pessoas, projetos, instituições

Para quem quer que seja...

O NÃO passou a ser libertador, porque, de fato, diante dele comecei a perceber que, de fato, as demandas de tempo, ação etc. SÃO DOS OUTROS, não minhas. 

Que não posso ser responsável pela ansiedade alheia ou por todas as desconhecidas variáveis do mundo além do meu umbigo, já que gasto uma energia administrando a minha própria ansiedade, o que já é um saco também (hahahahaha). 

Com isso, passei a ser protagonista de eventos, estabelecendo limites para o mundo afora. O tempo dedicado ao autocuidado e autoconhecimento veio se elongando mais e mais, trazendo plenitude e consciência. 

O tempo para a aula de yoga sem culpa foi se operacionalizando, a meditação foi se desenhando como ritual espontâneo e as atividades lúdicas foram se realizando de forma orgânica e natural.

E o mundo, as pessoas, os demandadores de plantão? 

Continuam em suas trajetórias pessoais de demandas e expectativas não resolvidas. O que não é mais problema meu

Esse é o ponto...seguir adiante, com a espontaneidade do processo interno e se desvincular, desapegar, retirar o peso que as pessoas, coisas e estados das coisas representam em nossas vidas. 

É uma jornada desafiadora...mas, o que, de fato, assim não é nessa vida?

Então que seja e traga crescimento e bem-estar para a alma.

Caso contrário, seremos apenas discos furados repetindo padrões, pelo infinito...






quinta-feira, 16 de junho de 2022

Sair da Matrix: entrar, sair, ficar, permanecer...por onde começar?

Toda época traz a marca de seu momento, seja por estereótipos, modismos, clichês, movimentos ou símbolos que, repletos de significados, são capazes de mudar o comportamento humano e transformar, em certa medida, o mundo.

Woodstock, Rock in RIO, Diretas Já...

Misticismo...esoterismo...cristais, velas, mantras, orações...alimentação orgânica, vegana, pesceteriana, onívora, macrobiótica...mercado de pulgas, de trocas, energia de fluxo, de contribuição, brechós, offgridliving, minimalismo...

Depois que o filme Matrix emergiu como uma espécie de "contracultura" em 1999, a década seguinte firmou um novo paradigma emergente: ruptura, sem precedentes, de uma grande "matrix", econômica, financeira, (geo)(exo)política, religiosa e cultural que trazia, até então, o mundo compactado em uma redoma de comportamentos previsíveis, automáticos e anestesiados. 

Neo e sua trupe nos fizeram enxergar com olhos, cuja musculatura estava atrofiada, um mundo de ilusoriedade que nos aprisionava: a ignorância diante do condicionamento de nossa mente, para que servíssemos de "bateria alcalina" eterna para alimentar a inteligência artificial a quem demos poder ao longo dos anos.

Lembro bem daquela época: o cenário do filme refletia uma boa história digna de ficção científica, pois ainda estávamos no início dessa virada tecnológica sem precedentes. Mas a História (ou história, sabe-se lá se é fake news, rs) tem nos mostrado que Matrix profetizou boa parte das transformações que hoje são corriqueiras e comuns, como videochamada, redes sociais, ensino à distância etc. 

A partir daí, os debates nos meios virtuais convergiram para a danada da "saída ou fuga da Matrix", rendendo livros, séries, entrevistas e muita, muita reflexão no sentido de se buscar, de alguma forma, uma vida mais simples, fora dos aglomerados urbanos de adensamento neurótico, no intuito de encontrar a tão sonhada "paz interior".

Offgrid living, numa tradução bem rasteira, significa viver fora da rede...fora do mainstream (modelo hegemônico) com que o tal sistema passa a "tarrafa" em todos nós (falamos em rede, nada mais metafórico do que a tarrafa arrastada para pegar, aos montes, peixes e crustáceos, sem a menor chance de escapatória). 

Daí vamos para as redes sociais, bem imagéticas, damos "curtidinhas" numa foto aqui, noutra pose ali. 

Fazemos até curso para aprender a vender felicidade...do outro. 

A ludicidade alheia passou a fazer parte do cardápio oferecido nessa quimera de busca imediata de uma felicidade já pronta, em pílulas (de preferência), como válvula de escape para o chamado "mundo real opressor".

Ponto bem positivo dessa virada paradigmática tem sido a busca de jornadas, caminhos e mudanças, a partir do descontentamento com uma realidade que nos é incômoda. Seja meditando, orando, praticando yoga ou tai chi, comendo melhor, dormindo bem, não importa: queremos usufruir desse manjar dos deuses, a todo custo

Daí, o inconveniente: tendo experimentado esse "cadim" de felicidade, como voltar?

Não tem como! 

Por isso, diante de todo esse processo, a saga de Ícaro: vamos "sair da Matrix", com suas milhares de fórmulas mágicas, recitadas pelos gurutubers de plantão, que falam, falam e...falam, mas estão na Matrix ganhando o "pão nosso de cada dia" e cuspindo, literalmente, no prato em que comem...

Não, não se "sai" simplesmente da Matrix, se a consideramos multidimensional, a partir, primeiro, da nossa tridimensionalidade. Lamento desapontar quem achou que eu iria aqui falar que estamos todos salvos...

Uns falam que podemos minimizar seus impactos, outros falam em otimizar. 

Tantos outros falam em "dar nó e usar a Matrix como ela mesma". Mas, em todos os discursos, um ponto comum: permanência da ideia, do símbolo, da latência do que é matricial, ou seja, sistemicamente fechado e com padrões e repetições dentro de um universo de previsibilidade. 

Nesse plano em que se concebe Matrix como uma ideia - e, apropriada como espetáculo, ideOLOGIA - a Matrix está bem, obrigada. Respaldada, ainda, por um macrossistema: financeiro, econômico, educacional, religioso, político e globalizado, cabeças de serpente que, apesar de cortadas, nascem novamente, com algumas pequenas mudanças. Mas substancialmente iguais. 

Por isso me coloco a pensar no caminho que decidi fazer, que foi deixar, um pouco, a paranoia da matriz externa e megalômana que Neo haveria de destruir sendo o salvador, e me concentrar em um microssistema menos pretensioso (mas também complexo): eu

Percebi, então, que o primeiro movimento consiste no despertar mental, desencadeando, aos poucos e em lentos passos, uma desconstrução de padrões e comportamentos, ressignificação de tudo aquilo que guarda identidade com uma mera cultura de replicação robótica e inconsciente de crenças limitantes, medos, mitos e condicionamentos

Meu mundinho "alternativo" começou, de fato, a ruir, quando descobri que, mesmo no modelo de consumo consciente, vegetarianismo e todos os -ismos, estava, ainda ainda, dentro da caixinha de consumismo, para preencher o vazio existencial da descoberta do vazio existencial do paradigma dominante, de consumo. 

Leitura, leitura, leitura. Terapia alternativa, terapia alternativa, terapia alternativa. Entupindo-me de dados e bits sobre "como sair", cometi o engano de, no processo, chafurdar até o pescoço na Matrix. 

Hein? Simples: um cachorro atrás do seu rabo, infinitamente...

O mundo alternativo também pode refletir a Matrix?

Claro, sempre que, em nome de uma "libertação", pegamos carona nos fluxos, sem nos perceber, durante o processo. 

Sem refletir. 

Não adianta deixar de ir ao shopping e passar a comprar em brechó ou trocar roupa se isso se faz como repetição do padrão de fuga da percepção de si, para virar uma aderência ao externo. 

A ausência de reflexão, aliada ao grande sedutor inconsciente - dinheiro ou fluxo de troca - coloca o mais estereotipado mestre na posição de agente Smith, tal qual o mais mundano dos mundanos (no caso do filme, o Cypher, um dos poucos que, tendo acordado, quis voltar).

Qual a fórmula?

Não sei, porque fórmula, geralmente, é algo que tem um sentido universalista, outra pegadinha da Matrix, universalização em rede...rs

E o caminho não é universal em um primeiro momento, mas pessoal, solitário e desafiador, pois, mesmo estando com alguém, família ou até numa multidão, ao final, somos nós quem vamos seguir a jornada.

Para mim, o processo ainda segue...

Começou na inquietude e na inconveniente sensação de "que algo estava errado", depois foi para, cada vez mais e mais, a busca por me desonerar das bagagens que entupiam meu HD. Depois passou pela consciência de como funciona o corpo, a emoção e a mente, essa, sim, o carro alegórico dos processos de autoengano, na tentativa de pegar atalhos e catalogar tudo e todos. 

Com isso, as oscilações...paz, raiva, amor, desejo, futilidade, desapego, apego...a jornada me trouxe para o mato, a sustentabilidade e, com ela, a redefinição do que era importante em minha vida.

Uma lista de 50 itens virou uma de 30, de 20, depois de 10. 

Aos poucos, na medida em que ia me recolhendo em relação ao que o externo impelia a mim, a coisa foi acontecendo, literalmente, de dentro para fora. Consumismo parando, o ir e vir do passado e futuro foram cedendo espaço para o aqui e o agora.

Passei a desacelerar mais, a me alimentar melhor. A contemplar mais a natureza, as pessoas que amo. A cuidar mais de mim, seja fazendo yoga, seja meditando. 

Silenciando para sentir o recado do Universo (Deus) para mim.

Parei? Acabou? Sou iluminada? Hahaha, longe disso...mas não importa, porque a jornada, embora desconhecida, é profunda e nunca se acaba, e a luz nunca se compacta em definitivo num lugar...

O que acho mais importante, nesse processo, é simplesmente ter fé e acreditar que o caminho, em si mesmo, é a jornada que não tem fim, na eternidade com que nossa alma desafia nosso medo de perecer...

Namastê!




quarta-feira, 1 de junho de 2022

Observando "limites" na prática do yoga: o ir e vir da mente na superação da zona de conforto

Quando olhamos as bonitas fotos no instagram, quase sempre vemos postagens mostrando posturas difíceis e mirabolantes, executadas com perfeição por praticantes e instrutores de yoga. [chamei "postura", e não asana, porque sinto que a mera performance executada em frente à câmera, para fins expositivos, sem o contexto amplo e profundo do que o yoga significa, não é asana].

Admiramos tamanha plasticidade, beleza e desenvoltura, não é mesmo?

Pensamos "uau, como alguém consegue fazer isso?"

Ou, ainda, naquela fração de tempo em que a estima é abalada, achamos que "nunca vou fazer isso" e "yoga é para quem tem flexibilidade". 

Ângulo da luz, bonitas paisagens, malha bonita e corpo "sarado", elementos que se somam para a construção de uma "selfie" que reflita a postura compartilhada na rede social para divulgar o fantástico trabalho que o yoga faz em nossas vidas, por meio dos benefícios que essa senda milenar traz para a jornada do praticante. 

Diante desse contexto lindo de contemplação da arte, podemos cair na tentação de olhar apenas a perfeição...do outro. 

Afinal, ela nos seduz e cativa, por conta de tantos componentes imagéticos que são acionados por meio do registro virtual, trazendo um desejo de alcançar, a todo custo, aquele ideal de execução do asana.

"Treinamos", praticamos, exigimos de nós a excelência, tudo no intuito de, um dia, podermos executar o asana de forma minimamente parecida ao ideal que "printamos" em nosso HD mental, graças ao bombardeamento de imagens que assolam o mundo das hashtags.

Se não atentarmos para esse processo sutil, entramos numa espiral de condicionamento da mente, do emocional e do corpo rumo à extrema pressão, podendo resultar no esgotamento e na ocorrência de lesões que, quase sempre, deixam-nos de molho por dias e até meses. 

Como lidar com essa linha tênue entre se desafiar, de forma saudável, e de se agredir por pura projeção de uma egotrip

Essa pergunta traz muitas reflexões, permitindo, ali, na prática no tapetinho, que a articulação entre alguns dos princípios (membros) do yoga - os angas - contribua com o desnudamento dessa linha tênue entre a prática desapegada e a ostensividade nociva da obsessão pela realização do asana.

Hoje, em especial, falaremos sobre alguns yamas (preceitos éticos, de observância interna, que se projeta na conduta do praticante, em relação a si, com o outro e, por que não dizer, com a vida)

Quando estamos no tapetinho, geralmente ouvimos a instrução para não praticar violência e observar nossos limites naquele momento, componente básico de ahiṁsāum preceito genérico que não apenas se relaciona ao aspecto qualitativamente físico, mas a absolutamente tudo que diz respeito à agressividade, refletindo, em nossa jornada no dia-a-dia, a modulação de nossas conduta, em relação aos outros e a nós mesmos.

Como ele se materializa? Como se respeitar na hora da prática?

Na observação de si, como aquele terceiro que se olha, percebendo alguma alteração, dor ou dessintonia potencializada que, mais adiante, com a prática, pode se plasmar de forma mais direta e contundente. Assim, de início, perceber uma câimbra, luxação, uma dor latente ou até um leve desconforto já nos acena maior zelo em observar, dentro da dinâmica da prática, o que podemos fazer e em qual medida. 

E quando estamos no asana

A estabilidade confortável nele já sugere o conforto. Muitas vezes existem variações do asana que podem ser trabalhados na prática. Esse momento é o desafio para o praticante: ir ou ficar na "zona de conforto"?

Já me lesionei muitas vezes por trazer justamente para esse momento zero esse pensamento, essa dualidade: sair da zona de conforto e me arriscar? Outras vezes, minha mente ia mais longe, chegando a querer prever riscos (parecendo seguradora cotando seguro de acidente). 

Esse é momento para o desapego dessa dicotomia, pois ela, vindo da razão (julgamento, valoração, crítica) reafirma a tensão e faz transparecer o ator por trás dessa inquietude: ego...

Como resolver, então? 

"Resolver"? 

Não se trata de resolução (de novo, a razão dando pitaco), mas do isolamento da percepção, com a realização do asana. Se fluir e a entrada se der nessa dinâmica de leveza, sem que desfoquemos para avaliar ou racionalizar "perdas e ganhos", já obtemos o resultado. 

Importante lembrar que, algumas vezes, nosso corpo imanta barreiras ou travas, por cautela em relação à exposição ao risco (receio): uma espécie de congelamento ou tensão que enrijece musculatura, articulações, tudo fica "duro". 

Creio ser o momento propício para aprofundar o pranayama, investindo no ir e vir da inalação (pūraka) e exalação (rechaka), sobretudo nessa última, ocasião em que podemos nos recolher e entrar no asana, se esse assim o pedir (cada imersão tem uma dinâmica de respiração, impactando, assim, o pranayama). 

Nesse mergulho, satya reluz como verdade maior que, aliada ao desapego (aparigraha), traz o fluxo para a simples realização, e não para a busca de resultados. Essa verdade interior manifestada se revela por trás da máscara do "eu vou de qualquer jeito", esse "ardil" que damos em nós mesmos para nos "forçar" a fazer o asana, por puro apego ao sucesso e à obsessão de superação de limites.

Quando comecei a realizar esse caminho, um mundo novo se abriu. Isso não quer dizer que, volta e meia, eu não saia me lesionando por aí, em face da teimosia egoica, mas que, dentro dela e, para além dela, hoje consigo perceber melhor todo esse processo, a partir do tapetinho e, como lição, também fora dele. 

Uma leveza sem medida ou limite, potencializadora do bem-estar que o yoga proporciona em nossa vidas.

Namastê!




terça-feira, 12 de abril de 2022

Mantras, os sons de Deus e a força da criação



Quando a palavra "mantra" vem à mente, logo pensamos no famoso Om, cuja sonoridade nos embala para um estado de concentração, oração ou meditação, conforme nossa convicção e percepção a respeito do que significa essa vocalização. 

Quase todos os livros sagrados das mais antigas culturas do mundo convergem para uma ideia: a de que o Cosmos foi elaborado a partir de luz e som (o que, de fato, não diverge tanto assim do que desenvolve a ciência a respeito do tema). 

Com isso, em muitas dessas culturas, a prática de cânticos, o entoar de mantras e partículas sonoras, bem como a busca de alinhamentos lunares e solares foram a maneira de se conectarem mais ao divino, a Deus.

No yoga, a vocalização dos mantras cumpre essa função de conexão. 

Mantra, do sânscrito man (pensar) + tra (instrumentalidade), constitui um fonema ou repertório de frases, aparentemente ininteligíveis ao ego condicionado na língua-mãe de cada um de nós, mas com signo, significado e significante antigos, presentes no akasha ou repositório universal (uma espécie de dicionário linguístico da humanidade, em seu aspecto individual). 

Para Feuerstein, o fonema pode, ou não, ter um sentido comunicável, destinando-se a nos levar para a contemplação, a partir de um sentido iniciático, no qual a sílaba ou o fonema só adquire sentido após ser compartilhada com o discípulo pelo mestre (guru).

Assim, longe de ser algo despretensioso, o mantra agrega, para a cultura indo-védica, na sua origem, esse aspecto iniciático de conhecimento transmitido numa linhagem, tradição e disciplina próprias. 

Porém, para além de um dogma iniciático e hermético, tenho, por experiência, que a função do mantra (maneira de pensar, forma de pensar) se destina, em nível consciente, a chamar a atenção do ego vacilante e falante (pensante), enquanto que em nível subconsciente, de produzir gatilhos para essa semântica sagrada, que não é entendida pelo ego, mas acessada pelo Eu Superior, em nível inconsciente

É entre o subconsciente e inconsciente que opera a maravilhosa atividade mântrica. 

Quando entoado com a convicção de sua atividade, ele produz profundas transformações, pois reverbera no ambiente, bem como adentra as camadas e os subníveis energéticos mais profundos (lembrando que, ao final, somos poeiras subatômicas ordenadas e plasmadas no material, mas fundamentalmente energia pulsante), produzindo ondas que anestesiam a mente pela repetição do som no qual está aderida a mensagem.

Assim, quando mantramos, nossa mente não reconhece a língua ou o significado estrito do mantra, ficando inquieta e, até mesmo, insana, tentando "quebrar a cabeça para tentar descobrir o que se fala e, com isso, como sempre, produzir um "mar de sabotagens" ("eu não tive tempo", "eu tenho que fazer isso", "eu não consigo" etc.)

Quanto menor a frequência de onda, o que se percebe, por exemplo, no mantra acima, entoado guturalmente e com timbre grave, mais se acessa a camada de unidade mais básica do humano. 

Os monges tibetanos, por exemplo, revezam-se entoando OM ou AUM-OM (sons primordiais) para descondicionar os 3 primeiros chackras, que são, em nível de desenvolvimento espiritual coletivo, os que demandam mais atenção, porque nos ligam ou conectam ao material, mundano, tridimensional, com tudo que diz respeito a ele enquanto alicerçado nessa 3D. 

Na meditação cristã, os hesicastas reverberam "Jesus, Filho de Deus", ou "Maranata" (vem, Senhor). 

Qualquer que seja a tradição, na medida em que se alavancam outros estados de consciência, bem como frequências mais amplas, amplia-se para os demais chackras todo esse trabalho que se inicia na inalação de prana, bem como na movimentação das cordas vocais e se alastra para os vórtices e pontos de energia (chackras e nadis). 

Qual a diferença entre um mantra em sânscrito e tibetano para uma oração em português ou inglês (ou a língua original da pessoa)? 

A diferença é a sofisticação do ego, que se desenvolve também em nível intelectual (aliás, intelectualidade, vaidade e ego caminham, muitas vezes, juntas no não desperto) e, durante a entonação na língua conhecida, começa e enviar e desenvolver pensamentos que, como um fluxo, desviam de rota a finalidade conectiva. 

Por isso que palavras têm poder, tanto de nos elevar, mas, também, de nos fazer decair. 

A escolha sempre é nossa, seja em nível de ego ou alma.

Na prática de yoga, por intermédio da puja, entoamos mantras com o propósito pedagógico de adestrar o ego, para que, durante a prática, tenhamos consciência do que ele promove de sabotagem específica do tapetinho, que se irradia para a vida, se deixarmos ("isso é difícil para mim, é impossível fazer isso, não dou conta, vou levar muito tempo para fazer, sou muito duro, não tenho flexibilidade"). 

Assim como podemos escolher o que podemos degustar para nutrir nosso corpo, podemos escolher o que falar, pensar e ouvir, para que a alma também seja nutrida de afeto, amor, autoaceitação e coragem para os desafios que se apresentam durante nossa jornada. 

Gratidão!


sexta-feira, 4 de março de 2022

Meditação cristã: quando o preenchimento e o esvaziamento se completam numa ascese renovada

Quando tomamos contato com o tema meditação, quase sempre vem à mente aquela imagem de alguém posicionado no asana de lótus, de olhos fechados, pernas cruzadas, em silêncio, absorto pela percepção do Em-si que se observa, num método próprio da literatura oriental, mais especificamente asiática, incorporada no Ocidente pela apropriação feita nos últimos 50 anos.

Com vertentes das mais variadas (guiada, vipassana, zazen, transcendental, hindu etc.), até desembocar na "invenção" ocidental efetuada pelo mindfulness (que nada mais é do que pratyahara, dharana e pitadas de dhyana), meditar sempre foi sinônimo de introspecção e recolhimento, estados geralmente relacionados à prática oriental de esvaziamento da mente ou, então, de desapego do fluxo de pensamentos para o preenchimento com o Todo.

Eis a razão pela qual o silêncio constitui o impulso vital dessa dinâmica,  incompatível, a rigor,com a inquietude ocidental, sempre embalada pela racionalidade e que se ocupa muito mais de especular e teorizar a espiritualidade e as técnicas de meditação para o convencimento racional de seu significado e, depois disso, algum sentido de execução, sempre na ideia de transcendência e apartação.  

Tempos atrás, contudo, um conhecido me apresentou a meditação cristã, o que chamou bastante minha atenção, sobretudo porque, àquela época, eu havia acabado de me converter e ser batizada, o que gerou inicial reflexão de minha parte sobre o que seria "adequado" dentro do que estava a apreender e aprender (acabei descobrindo, nessa jornada incrível, que não acabou, que o conteúdo, a motivação e o impulso de Deus é mais relevante do que fazer um checklist inquisitorial sobre o que se permite ou proíbe).

Em contraste, isso se somou aos meus preconceitos em relação ao "purismo" da meditação no Oriente, pois achei paradoxal e contraditória a existência de uma meditação cristã, sobretudo diante da ideia de "esvaziamento" da mente, já que tal referência (cristã) me alojava para o acionamento de conteúdos que seriam incompatíveis com o vazio, a exemplo do acionamento do nome de Jesus para ancorar a meditação.

Assim, em princípio, tudo aquilo que não fosse técnica advinda do budismo, hinduísmo e demais nichos orientais não era, para mim, reconhecida como meditação, mas, por outro lado, não sentia afinidade pelos usuais métodos de uma liturgia e oratória cristã. 

Qual não foi minha surpresa, ao acessar a literatura indicada pelo conhecido, iniciando pelo livro Relatos de um Peregrino Russo e pela Pequena Filocalia, ambos trazendo experiências concretas de monges e homens santos da Igreja Ortodoxa do Oriente (grega, russa, eslava), um universo até então desconhecido para mim (já que vim de um lar materno católico e, portanto, mais acostumada com Roma).

Deparei-me com um verdadeiro mergulho na senda meditativa cristã oriental, que parte, quase sempre, de jornadas espirituais que visam proximidade com Deus, por experiência real e concreta (ou seja, imanente,) de quem se lança a essa intentada. 

Nesse sentido, acabei me desalojando um pouco mais do modelo de prece ou repetição contínua e automática de palavras, para retomar a conhecida introspecção, na qual a respiração é um dos vetores principais a se cultivarem a quietude e o silêncio (para o sistema do yoga, pranayama). 

Isso porque, para o hesicasmo, a ideia de Deus não é meramente transcendente, uma ascese dualista donde se parte dessa cisão entre o solitário meditador e o Criador, mas, para além disso, uma conexão imanente na qual se vivencia a experiência de se estar conectado a Deus pelo coração, órgão que é bastante acionado na meditação cristã, por meio da chamada oração do coração, também chamada de oração perpétua de Jesus

A ancoragem, assim, na meditação cristã hesicasta (em homenagem aos monges hesicastas), é feita por intermédio da entonação da oração perpétua de Jesus em suas variações ("Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende piedade de mim, pecadora", "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus", "Senhor Jesus"), ao tempo em que se inala e exala.

A ideia, aqui, é trazer, pela inalação, o conteúdo latente e a vibração que o nome de Cristo (Jesus) para o coração, para ali alojá-Lo, de modo a reverberar, depois, para todo o corpo do meditador essa energia em torno do nome de Jesus. Na exalação, quando me assumo pecadora imperfeita (mas sem o stress de me sentir condenada e culpada), percebo e sinto o sopro de Deus-Filho como redenção. 

A oração perpétua começa em nível verbal, porque primeiro escutamos, depois ouvimos, agregando o aprendizado do conteúdo semântico e, por trás dele, o latente, que circunda o santo nome de Jesus). 

Depois, em nível mental, porque na recorrência da entonação, acionamos um gatilho subconsciencial que depura a mente dos ruídos que "atrapalham" o foco e a concentração. 

E, por último, o que os monges hesicastas chamam de alojamento no coração, que é inscrever essa frase no coração, trazendo Jesus para ele, o que me acendeu o lampejo do encontro de culturas, já que tal técnica muito se assemelha ao próprio percurso do yoga em alguns de seus elementos (asana, pranayama, pratyahara, dharana, dhyana e samadhi).

Sem deixar de mencionar a importância, para a meditação cristã, da hesiquia, ou seja, do recolhimento solitário, o que é marca diferenciada do processo, já que estamos acostumados com a reunião para oração. 

Não se trata de processo excludente, mas, ao contrário, outra e mais uma forma de vivenciar Deus em nossa jornada, uma percepção de que nossa mente é nosso maior sabotador em relação a experiência empírica com Deus, sobretudo quando confundimos animismo e catarse com presença de Deus e fé

Por isso a autopercepção, longe de ser uma ancoragem na egoidade, é o reconhecimento de como o ego pode nos desviar do propósito, induzindo-nos a acreditar que estamos experienciando algo que, de fato, deriva mais do autoengano idiossincrático do que do encontro com Deus. 

Traumas, recalques, dores não clarificadas, ideias, valores e referências do inconsciente coletivo, tudo isso, no campo da mente e do emocional, pode trazer a falsa percepção de encontro com Deus, o que é bem evidenciado no processo meditativo, quando começamos a naturalmente observar essas estruturas durante a vigília. 

Outro momento dentro da meditação cristã de extrema importância diz respeito ao alojamento ou assentamento da mente nas coisas de Deus, não no sentido de mea culpa, expiação, comiseração no sentido punitivo a espelhar uma planilha de erros "durante o dia".

Aqui se trata da projeção do nosso universo motivacional na ideia de Deus e, com essa ideia, tudo se elabora, a partir de se invocar a oração perpétua de Jesus, que constitui a mais possante egrégora, pelo emblema que Cristo traz em razão do fato de ser Filho de Deus. 

Independentemente das frases acima reproduzidas marcarem espaços políticos de poder religioso nas diferentes concepções ou tradições (romana católica, ortodoxa, protestante, pentecostal e neopentecostal etc.), o que importa, aqui, é considerar o nome de Jesus como o aglutinador dessa energia acessada pelo meditador, motivo pelo qual é um ato solitário e pessoal ("tende piedade de MIM") que nos aproxima afetuosamente de Jesus... 

Tive a oportunidade de fazer um vídeo a respeito desses dois livros, compartilhando aqui com vocês. Espero que possa ser útil para quem está descobrindo Deus e Jesus em sua jornada. 



 







quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Diga-me, afinal, para "quem é o yoga"? Quando a sutil arte de oprimir se canaliza na docilidade do compartilhar



Ouvi, certa vez, num retiro, algo que nunca saiu da mente.

O instrutor, um guru com 45 anos de prática de yoga, comentou que "se, em sua vida de yoga, você não mudou absolutamente NADA em sua vida, provavelmente o yoga não é para você".

Quando ele falou isso tive aquele susto, o ego analítico foi logo contestando mentalmente, dizendo "que absurdo", "como assim", "que elitização".

Afinal, num mundo "zen", "somos todos um" [aspas para designar a redução do rico universo desses conceitos ao que é caricaturizado] e outros estereótipos encaixotadores, fazer uma afirmação dessas, para mim, naquela época (2000) era algo inimaginável e afrontoso aos "preceitos éticos do amor universal" [entre aspas mesmo, porque é mais um julgamento encaixotador].

Fui logo fazendo um "tratado" sócio-político-mental, invocando Bourdieu, Gramsci, Diderot, Foucault, Morin (rs, uma salada mesmo, não liguem) e puxei na mente uma tonelada de páginas de reflexões sobre igualdade, democracia e tantos outros conceitos que, por segundos, perdi-me da palestra e fiquei boiando na agitação da tempestade mental que instalei no lindo mar espelhado que tanto queremos alcançar com as práticas entronizadas de autoconhecimento.

"Não, não, não, não, não" - pensava - "eu QUERO que o yoga seja para todos", "eu quero que todos façam yoga", "eu quero que todos sejam felizes como sou", "eu quero, eu quero, eu quero", "quero, quero, quero", "eu, eu eu".

Total rota de colisão contra um muro de contenção, não é mesmo?

Eu quero, quero e eu, tudo de mais egoico numa mesma frase, numa anestesia da felicidade histriônica, que se apresentava como desejo incontido de esparramar a felicidade e o amor universal.

Trabalho voluntário aqui e acolá, burros n´água aqui e lá e muro, muro e mais muro-namastê!

O que, céus, estava fora de prumo?

Claro que os outros! Os outros que estavam "errados"!

A humanidade "insensível", os seres "indisciplinados" e tudo aquilo que poderia eu utilizar para justificar lá fora as lições que deveria aprender ainda a respeito de mim mesma.

Mas, com o tempo e a prática, fui observando em mim, nas insistências e teimosias em continuar batendo a cabeça e o plexo solar na mesma tecla, na tecla do "eu quero assim".

Enquanto seguia nesse barco da marretada, lesionava-me muito, ora por autoflagelação, ora por antagonismo, pretendo provar algo a não sei quem.

Estou longe de ser modelo ou exemplo de perfeição que, aliás, nem bem sei o que é nessa tridimensionalidade, mas tenho aprendido bastante a lição da água e do bambu: seguir um fluxo (tem um fluxo, um caminho, não é nada esculhambado de "ver qualé" ou "sentir a onda") e, diante da vicissitude do vento, voltar, ir e vir.

Daí, aos poucos, fui percebendo o que o guru, com o universo semântico dele, trouxe de lição para mim...

Percebi que o yoga, para otimizar nossa vida, precisa sair do tapetinho e passar a integrar, aos poucos, nossa própria forma de pensar, agir, falar, calar, fazer etc., pois, caso contrário, apenas aprofundamos os abismos da dualidade, chafurdamos nela, usando o yoga como muleta existencial, um instrumento guardado no armário para ser usado como válvula de escape, e não como uma vara a nos impulsionar.

Por isso hoje entendo melhor e com amorosidade quem se dispõe a encarar o yoga como mera "ginástica funcional, mecanismo contestatório do sistema-matrix reinante, terapia semanal ou alavanca de malabarismos Cirque du Soleil", está tudo certo, trata-se do caminho do outro...

Passei a perceber a história de vida por trás da indisciplina, das ausências, da falta de compromisso, na medida em que recolhi o flap do olhar para o outro e passei a perceber em mim a extrema crítica, alta cobrança interna, culpa e tantos outros sentimentos que, juntos, traziam uma malha de ilusão em relação à expectativa quanto ao caminho do outro.

Isso porque, por várias razões e vários motivos (ora escolhas conscientes, ora pegadinhas do ego a usar desculpas, ora incidentes sincrônicos), precisei parar com as aulas que estava fazendo, para focar apenas nas práticas que compartilhava nas aulas.

Porém, voltando, eu mesma (ou o eu-ego-somos-um), a praticar com outra pessoa na instrução (chamem de instrutora, professora, mestra, enfim, rótulos) senti o valor que o yoga tem em minha vida, bem como como custa negligenciar o cuidado para comigo, seja lá por qual nobre razão que "aconteça" em minha vida.

Trata-se de escolha e precisamos, sempre, conviver com o sistema de decisões, já que ainda tratamos tudo como "perda e ganho" (aquele clichê de "toda escolha supõe uma perda").

Mas, a questão é que é percebi ser necessário parar e reelaborar a planilha de prioridades, ponderando o que realmente preciso fazer por mim em contraste com o trabalho formal e institucional que demanda horas sentadas, 30 gatos, 10 cachorros (mais uns 5 a 7 vindo), limpeza de casa, cozinha, horta, chácara, gestão, cuidado com a família, tensão com obrigações, efeito da covid que até hoje está aqui, blá blá blá (não vou ampliar porque não se trata de uma lista de vitimização).

Seria muito prático "contratar" eventualmente uma massagista ayurvédica, terapeuta, fitoterapeuta, naturopata e toda uma linha de produção industrial que se estabeleceu numa "indústria Namastê" que está aí para isso: realizar o mesmo consumismo que tanto se critica no mainstream. [percebam: não é o paradigma alternativo, em si, que está fora de prumo, mas a banalização da cultura da salvação, na qual as pessoas usam do instrumental apenas para darem vazão a mecanismos de troca, compensação e substituição, sendo passivos em relação ao seu caminho de autoconhecimento].

É cômodo alguém fazer isso...mas, não seria a mesma válvula?

Sair do casulo, respirar o arzinho e, depois voltar para a sufocação?

Então, pensando nisso, resolvi me desafiar mais, disciplinar mais, pois, afinal, quem ganha com isso é minha alma, que vai se libertando, sempre e sempre.

Hoje posso dizer que estou na modulação do giro de chave na vida, pois minha prioridade comigo é, antes de tudo, o yoga que sustenta o corpo, a mente, a mente e o espírito e todo o restante da vida se faz em função disso para mim.

As contas de água, luz, mercado etc. continuam chegando, as demandas também, pois não tenho nada de diferente de ninguém.

A diferença, percebo por experiência, é como lidamos com nossas prioridades.

Por isso que, a cada recomeço de aulas de yoga choro, por me sentir em casa novamente...

Om shanti, shanti, shantihi!!!






domingo, 15 de agosto de 2021

E sopra o vento lúdico da eterna mudança...

Quando pequena (por volta dos 3, 4 anos), passei um tempo numa estância no sul do país, cercada pelo verde dos pampas, pela maciez da lã dos carneiros, pela impetuosidade dos cavalos e por tudo aquilo que a natureza traz em sua composição de mundo a refletir a edificação harmoniosa de Deus.

Mais tarde, senti bem a boa influência desse período, pois, sempre busquei agir conforme minha personalidade bucólica, onde o menos sempre foi mais.

Comida saudável, roupas confortáveis e naturais, viver com simplicidade: essa foi a dinâmica que trazia para minha vida um colorido nostálgico que me impeliu a retornar à vida no campo.

Quando me mudei da casa da minha mãe - por volta dos 29 anos - segui, de imediato, para um apartamento, sentindo grande diferença. Isso porque, até então, havia morado em casas, vendo minha mãe cultivando a terra, plantando as hortaliças, criando galinhas e convivendo com cachorros.

Decidi, desde então, que iria fazer um movimento gradual de retorno à vida simples do campo. Mais, que efetivamente iria retornar ao campo, à vida rural, longe do frenesi da urbanidade. Do apartamento, fui para uma casinha charmosa dentro da cidade mesmo, reproduzindo contudo, um modo de vida campestre. 

Plantei uma amoreira, iniciei meu jardim de ervas e fiquei ali, contemplando o início dessa jornada. Aprendi muito com as amizades que me trouxeram essa visão, aliada à alimentação saudável e frugal. 

Grana curta para os padrões sociais de uma ilha de fantasia, mas abundante para os propósitos que estava ressignificando para minha vida.

Saía para estudar (fazia doutorado em direito na época), indo de bicicleta da Candangolândia até a Universidade de Brasília, observando, contemplando, contentando-me com a vida, simples, como ela é. 

Dinheiro rendia, mesmo contando as moedinhas do porquinho para comprar a ração do dia para os catiorros e gatíneos, meus companheiros de vida simples.

A brisa no rosto me indicava sempre o caminho literalmente certo, pois a paz era uma constância dentro de mim, mesmo diante, claro, dos desafios que diariamente se colocam à nossa frente. 

PLENITUDE, a palavra-chave. 

Mais tarde encontrei um chalezinho no jardim Botânico. Terreno maior, mais árvores frutíferas, córrego passando lá no final do condomínio. 

Imergi mais no processo, porque o local era propício ao silêncio e à simplificação. 

De lá dei um salto para um condomínio ainda mais distante, com outro chalé avizinhado pela mata e por macaquinhos. Clima ameno, estrada verdejante, um sonho, literalmente. Como a distância havia aumentado, passei a racionalizar demandas. Sair de lá? Apenas diante de uma extensa lista de itens.

Cachoeira no local, trilha meditativa, yoga na comunidade: tudo estava de acordo com o ritmo da simplificação e do despojamento. Assim como a pele da cebola, fui me descascando, aos poucos, para a próxima etapa. 

Na última casa de condomínio, horta mais ampla, mais plantio de frutíferas, fogueira, cerradinho. Vista do horizonte verde do vale. O mesmo córrego, agora, de uma perspectiva um pouco diferente, lembrando-me que o rio e o ser humano não são os mesmos de qualquer forma. 

No início do ano, o vento da mudança. Encontrei uma chácara, longe da urbanidade, com 3 km de estada de chão, mais 8 km até a cidadela mais próxima. Local promissor para tudo que sempre desejei desenvolver, agora em escala maior: compostagem, galinhas, hortaliças, água. 

Sobretudo, o silêncio. O silêncio que nos coloca a refletir sobre o propósito de nossas vidas, sem o ruído que o ego distraído busca imprimir para não se sentir sozinho. 

Cada dia apresenta seu peculiar modo de vida. Agora, literalmente não tenho à disposição a possibilidade de pegar o jipe e ir ali, em 3 minutos, comprar um fósforo para acender a chama do fogão. Descobri que preciso me virar um pouco mais com o que tenho aqui em casa. 

A despensa me mostrou o que nutria, ainda, de medo, da escassez. Encontrei comida estocada que sequer sabia que existia. Ela se transforma, todos os dias, em surpresas criativas, nos pratos que invento, na alimentação que busco balancear. 

Depois que contraí covid (em fevereiro), voltei a comer carne e tomar leite depois de 20 anos.

Foi um momento interessante, um mix de terapia com desespero, pois havia ficado 3 meses sem olfato e paladar. Agora, naturalmente, volto - sem drama, sem querer dar lição de moral, ética, especismo etc. - a retirar a carne, sem me ocupar se isso é "para sempre", quando eu mesma não sou.

"Sou vegetariana"? 

"Sou ovo-lacto-alguma coisa"?

Não sei, o rótulo oprime demais, traz para a gente uma tábua de lei que, sem fé, nada quer dizer. Ainda mais com o verbo ser, outro problema existencial, posto que confundido, sempre, com a ideia de perpetuidade, num mundo em que tudo se transforma. 

Estou fazendo amizade com os pássaros que ficam por aqui, cada qual com um som diferente, que nunca ouvi antes. Um deles, um amarelinho, vem todos os dias até a janela do banheiro, olha para dentro e vai embora. Livre e solto. 

O sono voltou a ser leve, o tempo, a esticar e parar. Estou aprendendo, ainda, falta muito que assimilar. Estou na lição do despojamento das planilhas do "a fazer", porque existe muito a ser feito, e não tenho mesmo o controle de variáveis.

O salário precisa render mais para que a chácara se pague na restauração feita para que pudesse me mudar. A seca castiga o cerrado, com o fogo dando seu alô de vez em quando. A chuva, em outubro, marca a necessidade de resolver o galinheiro e a horta o quanto antes. 

Mas o "antes", agora sei, é de acordo com o fluxo, e não segundo minha vontade. 

Deixei a aula presencial, grata pelo tempo em que passei indo ao Condomínio Verde compartilhar o yoga. A turma, contudo, segue. Seguimos o fluxo que o coronavírus nos deixou de lição para o yoga on line, direto da "fazendinha". 

Enquanto a chama persiste, eis-me aqui para continuar. 

Estou conhecendo pessoas novas, com novas experiências a compartilhar. Gente simples, num mundo simples, que me faz perceber o quanto existe ainda de possibilidade a ser agregada, basta a disposição interna. 

O mundo, aos poucos, vai se redefinindo, moldando, modelando ao estado de alma, mostrando que, ao final, é o que trazemos dentro de nós que marca as escolhas a serem feitas...

São os ventos de mais uma mudança...

Gratidão, gratidão e gratidão.
 

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Quando a mudança vem e o propósito vai: lives for a new life, reflexões sobre a experiência da plenitude


Mudanças sempre nos trazem o convite para sair da zona de conforto e de uma espécie de "ostracismo" existencial, catapultando-nos a novas experiências, ressignificações, bem como a novos valores e atitudes.

Estava lendo aqui minha última postagem, láááááá em dezembro. Muita água rodou moinhos: contraí covid-19, fiquei meio sequelada, renovei algumas convicções, implodi outras tantas. 

Concretizei um projeto antigo de ir para uma chácara e incrementar, ainda mais, a visão living off the grid de mundo. Ovos, horta, pássaros, silêncio, liberdade, plenitude para os catiorros, gatíneos e, claro, para minha jornada. 

Desafios que se descortinam todos os dias: como lidar com o lixo produzido em casa, como lidar com a distância até o trabalho, estrada de chão, acesso a bens de consumo, enfim, elementos que, outrora, estavam na pauta de um dia-a-dia que, a cada dia, tenho descoberto ser apenas uma perspectiva.

Daí a ideia de compartilhar essa fase da vida, pois sempre escuto atentamente pessoas queridas desejando "dar um novo rumo na vida", "desacelerar", "mudar de vida". 

Como, então, fazer isso? 

Não sei, não tenho fórmulas prontas, muito menos que sejam universalizáveis, pois cada um tem a singularidade de jornada, que traz opções e escolhas distintas, ainda que, em regra, os dilemas humanos possam ser os mesmos, em menor ou maior grau de sofisticação. 

Esse vídeo acima inaugura essa fase fecunda: chama-se Lives for a new Life, iniciando com uma reflexão que tomo como premissa para o restante da conversa: qual é o seu propósito?

O quanto estamos dispostos a lidar com apegos e desapegos, para que possamos alimentar mais o espírito e esvaziar, assim, um pouco, o saco sem fundo do ego que vive para desejar, expectar e se frustrar. 

Fica o convite à reflexão...

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Pranayama: quando respirar é imergir e elevar

Dias atrás passei os olhos em uma reportagem postada em um desses sites internacionais bem conceituados, que replicam o paradigma dominante de ciência causal e determinista: falava em como a "respiração de bebê" poderia ser "benéfica para a saúde", sendo reconhecida ali como até mesmo preferível à respiração curta e torácica. 

Por que, então, ficamos tanto tempo sem essa pérola de validação científica, o bastante para uma notícia como essa trazer assombro e novidade? 

Por que a respiração abdominal, "de repente", explodiu como uma "novidade" terapêutica, quando, no mínimo, mínimo, ela já bem lá é mencionada em textos sagrados e tradicionais do yoga há séculos e séculos? 

Não sei, ao certo...

O fato é que nunca imaginei que iria ler algo assim lá, mas, tomada por uma inerente curiosidade em saber como o assunto seria abordado, arrisquei-me a ler, ficando bem feliz em perceber que, finalmente, a respiração diafragmática ou abdominal (como simplificamos nas práticas de yoga) foi reconhecida em seus inúmeros benefícios à saúde. 

Fiquei ainda mais surpresa ao ler na reportagem a referência a algumas técnicas apropriadas da literatura do yoga e, por conta disso, achei interessante aprofundar aqui um pouco mais o assunto, contextualizando-o na tradição do yoga. 

A respiração é o primeiro ato autônomo que realizamos quando aportamos nesse plano: recém-saídos do calor e do aconchego do útero de nossas mães, somos destacados da proteção de uma redoma que nos conforta e alimenta pelo cordão umbilical para adentrar um mundo totalmente desconhecido, onde o primeiro ato de sobrevivência consiste em sorver o ar e impulsionar internamente esse fluxo mágico.

Por isso a respiração, na literatura indo-védica, tem um significado místico de conexão às esferas celestiais de criação, como se vê no capítulo 4, verso 29 da Bhagavad Gita, que traz a referência expressa, "(...) apane juhvati pranam pranepanam tathapara / pranapanagati ruddhva pranayamaparayanah", traduzido por:

"Outros, tendo suspendido o movimento do prana e do apana, oferecem o prana no apana, assim como o apana no prana, engajados na prática do pranayama" (Barbosa, 2018, p. 95)

Outra tradução interessante está na Bhaktivedanta Database

"Há ainda outros, que estão inclinados ao processo de restrição da respiração para permanecer em transe, eles praticam oferecendo o movimento do alento expirado ao do alento inspirado, e o alento inspirado ao alento expirado, e assim acabam entrando em transe, suspendendo toda a respiração. Outros, restringindo o processo alimentar, oferecem o alento expirado em sacrifício a este mesmo alento.

Nesse sentido, para compreender melhor o pranayama, precisamos ir até a raiz da palavra prana como "força vital universal, uma energia psicofísica vibrante, semelhante ao pneuma dos gregos antigos (Feuerstein, 2005, p. 179), ultrapassando, assim, a mera ideia de sinonímia com "ar" ou "éter", para introduzir um elemento transcendente, presente em todo o Cosmos. 

Com um conteúdo inicialmente relacionado à religiosidade, a exemplo da recitação do Gayatri mantra (Kuvalayananda, 2008, p. 21) e da Bhagavad Gita, o prana e o pranayama se destacam, depois, com uma posição independente no contexto psico-fisiológico que Patanjali lhe confere nos Yoga sutras. 

Georg Feuerstein traz uma tradução a partir do prefixo pra, que indica o movimento contínuo, "respirando", e do radical an, "respirar",  reforçando, assim, o impulso vital e contínuo de energia, que se desenvolve no apâna prâna, a respiração relacionada à metade inferior do corpo, vyâna prâna, que circula em todos os membros, udâna prâna, respiração superior e samâna prâna, localizada na região abdominal. 

A partir dessa noção de prâna como força motriz universal, o pranayama compõe um dos oito angas (membros) do yoga, mencionado em vários textos, sobretudo na literatura de Patanjali, como uma espécie de senda ou caminho óctuplo (Feuerstein, 2005, p. 180).

Pranayama (prāṇāyāma, प्राणायाम do sânscrito) é uma palavra designativa de um movimento: prâna (respiração ou força vital) + âyâma (extensão) (Feuerstein, p. 180), um processo de controle da respiração e, a partir dela, da própria mente em seus estados de inquietude

Com isso, longe de ser um ato meramente mecânico, o pranayama é um dos pilares do processo de experienciação e expansão da consciência para estados mais elevados, por isso sua importância nas práticas de yoga, seja em um momento específico, ou, ainda, na realização ao ásana, ocasião em que harmonizamos (ou "encaixamos" organicamente) a postura à respiração (e não o contrário, como usualmente pode ser feito em exercícios usuais e funcionais). 

Uma das grandes diferenciações, porém, em relação à maneira como enxergamos a respiração no Ocidente e a riqueza consciencial que a prática do pranayama oferta está na importância das retenções no processo respiratório.

Isso porque tendemos a acreditar - até porque respiramos!!!! - que a otimização da respiração está no fluxo de entrada e saída do ar, chamados respectivamente de puruka e recaka na literatura yóguica. 

Somos condicionados, desde cedo, a produzir o fluxo do "inspira e solta" rápido, raso e superficial, que se aloja da traqueia para o centro do tórax, local em que reside a glândula timo (relacionada à expressão do emocional e sua conexão com o sistema imunológico) a receber o impacto dessa afoiteza.

Não seria exagerado afirmar que "alimentamos" nosso timo e coração de ansiedade quando respiramos assim, de forma fragmentada e rápida. Ao invés de produzir serenidade, nossa programação nos leva à manutenção da agitação e da ansiedade.  

Fazemos, então, uma confusão fisiológica enorme, que traz, muitas vezes, sofreguidão e ansiedade, por meio da respiração ofegante e curta, apenas direcionando o ar para o cardíaco ou, quando muito, para a região central do tórax, como náufragos em busca de uma boia de salvação. 

Isso porque é no kumbhaka, a retenção do ar com o abdômen cheio ou, ainda, a permanência sem ar,  o trabalho primoroso de respiração cósmica plenificada, alavancando-nos para estados de consciência diferenciados, ao tempo em que otimiza a capacidade de oxigenação do corpo.

Quando retemos o ar sorvido e deslocado para a região abdominal (puruka), é possível sentir uma pressão interna maior, que permite, por sua vez, ampliação da abertura e permeabilidade dos alvéolos para que a oxigenação se dê e se expanda para o corpo todo, como uma grande e serena onda. 

Esse movimento, quando realizado com foco, disciplina e conhecimento (aliado, por exemplo, à percepção da glândula pineal, ou, especificamente, do ajña chackra), reproduz o sentido de plenificação, trazendo a sensação de completude que nos faz sentir parte de uma realidade extrafísica despojada da percepção e do apego à sensorialidade tridimensional. 

Ao exalar e manter o esvaziamento (recaka), uma vacuidade é experimentada e, com ela, a expansão consciencial, na medida em que, vazio, nosso corpo tem o potencial de ser preenchido com o Todo (inclusive mais oxigênio). 

Esse movimento de ir e vir, tal qual o embalo das ondas do mar, que marca a maior distinção na maneira como ordinariamente vemos a respiração, para o verdadeiro significado do pranayama, razão pela qual respiração e pranayama não são sinônimos.

De fato, a respiração faz parte do pranayama, que envolve, como visto, uma consciência em relação a todo o processo, saindo da mecanicidade para abraçar o significado latente de conexão com o divino. 

Quando experimentamos, aos poucos, com conhecimento da técnica, as retenções, passamos a observar internamente essa "chave" de mudança do sentido do prana no corpo, direcionando-o a locais que demandam maior atenção. 

Um bom começo para realizar essa mudança consiste na modificação do fluxo da respiração: ao inalar, experimente, em 4 profundos tempos , encaminhar o prana para o abdômen, inflando-o como um balão. Depois esvazie o abdômen, sugando o umbigo, também em 4 tempos. 

Aos poucos e com consciência, você pode introduzir o kumbhaka, inalando, retendo, exalando e ficando sem ar, tudo em 4 tempos para cada processo. Em condições usuais, respiramos entre 14 e 20 vezes, mas, com a técnica, é possível aquietar e respirar 1 até 3 ou 4 vezes apenas, aproveitando, assim, o prana dentro de nós. 

Importante, porém, perceber que essa técnica não se destina a produzir um "desafio respiratório", mas um caminho de autoconhecimento. Por isso, fazer o kumbhaka apenas com um sentido egoico, além de não produzir benefícios, pode ser prejudicial para a saúde (desmaio, tontura etc.). 

No caso de dúvida, sempre é bom lembrar do suporte de um instrutor de yoga, ayurveda ou meditação, ou, ainda, alguém que esteja familiarizado com a técnica. 

No mais, basta imergir e se descobrir nesse lindo processo e usufruir dos benefícios para o corpo, o emocional, a mente e o espírito!

Hare Om Tat Sat!!!