sexta-feira, 4 de março de 2022

Meditação cristã: quando o preenchimento e o esvaziamento se completam numa ascese renovada

Quando tomamos contato com o tema meditação, quase sempre vem à mente aquela imagem de alguém posicionado no asana de lótus, de olhos fechados, pernas cruzadas, em silêncio, absorto pela percepção do Em-si que se observa, num método próprio da literatura oriental, mais especificamente asiática, incorporada no Ocidente pela apropriação feita nos últimos 50 anos.

Com vertentes das mais variadas (guiada, vipassana, zazen, transcendental, hindu etc.), até desembocar na "invenção" ocidental efetuada pelo mindfulness (que nada mais é do que pratyahara, dharana e pitadas de dhyana), meditar sempre foi sinônimo de introspecção e recolhimento, estados geralmente relacionados à prática oriental de esvaziamento da mente ou, então, de desapego do fluxo de pensamentos para o preenchimento com o Todo.

Eis a razão pela qual o silêncio constitui o impulso vital dessa dinâmica,  incompatível, a rigor,com a inquietude ocidental, sempre embalada pela racionalidade e que se ocupa muito mais de especular e teorizar a espiritualidade e as técnicas de meditação para o convencimento racional de seu significado e, depois disso, algum sentido de execução, sempre na ideia de transcendência e apartação.  

Tempos atrás, contudo, um conhecido me apresentou a meditação cristã, o que chamou bastante minha atenção, sobretudo porque, àquela época, eu havia acabado de me converter e ser batizada, o que gerou inicial reflexão de minha parte sobre o que seria "adequado" dentro do que estava a apreender e aprender (acabei descobrindo, nessa jornada incrível, que não acabou, que o conteúdo, a motivação e o impulso de Deus é mais relevante do que fazer um checklist inquisitorial sobre o que se permite ou proíbe).

Em contraste, isso se somou aos meus preconceitos em relação ao "purismo" da meditação no Oriente, pois achei paradoxal e contraditória a existência de uma meditação cristã, sobretudo diante da ideia de "esvaziamento" da mente, já que tal referência (cristã) me alojava para o acionamento de conteúdos que seriam incompatíveis com o vazio, a exemplo do acionamento do nome de Jesus para ancorar a meditação.

Assim, em princípio, tudo aquilo que não fosse técnica advinda do budismo, hinduísmo e demais nichos orientais não era, para mim, reconhecida como meditação, mas, por outro lado, não sentia afinidade pelos usuais métodos de uma liturgia e oratória cristã. 

Qual não foi minha surpresa, ao acessar a literatura indicada pelo conhecido, iniciando pelo livro Relatos de um Peregrino Russo e pela Pequena Filocalia, ambos trazendo experiências concretas de monges e homens santos da Igreja Ortodoxa do Oriente (grega, russa, eslava), um universo até então desconhecido para mim (já que vim de um lar materno católico e, portanto, mais acostumada com Roma).

Deparei-me com um verdadeiro mergulho na senda meditativa cristã oriental, que parte, quase sempre, de jornadas espirituais que visam proximidade com Deus, por experiência real e concreta (ou seja, imanente,) de quem se lança a essa intentada. 

Nesse sentido, acabei me desalojando um pouco mais do modelo de prece ou repetição contínua e automática de palavras, para retomar a conhecida introspecção, na qual a respiração é um dos vetores principais a se cultivarem a quietude e o silêncio (para o sistema do yoga, pranayama). 

Isso porque, para o hesicasmo, a ideia de Deus não é meramente transcendente, uma ascese dualista donde se parte dessa cisão entre o solitário meditador e o Criador, mas, para além disso, uma conexão imanente na qual se vivencia a experiência de se estar conectado a Deus pelo coração, órgão que é bastante acionado na meditação cristã, por meio da chamada oração do coração, também chamada de oração perpétua de Jesus

A ancoragem, assim, na meditação cristã hesicasta (em homenagem aos monges hesicastas), é feita por intermédio da entonação da oração perpétua de Jesus em suas variações ("Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende piedade de mim, pecadora", "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus", "Senhor Jesus"), ao tempo em que se inala e exala.

A ideia, aqui, é trazer, pela inalação, o conteúdo latente e a vibração que o nome de Cristo (Jesus) para o coração, para ali alojá-Lo, de modo a reverberar, depois, para todo o corpo do meditador essa energia em torno do nome de Jesus. Na exalação, quando me assumo pecadora imperfeita (mas sem o stress de me sentir condenada e culpada), percebo e sinto o sopro de Deus-Filho como redenção. 

A oração perpétua começa em nível verbal, porque primeiro escutamos, depois ouvimos, agregando o aprendizado do conteúdo semântico e, por trás dele, o latente, que circunda o santo nome de Jesus). 

Depois, em nível mental, porque na recorrência da entonação, acionamos um gatilho subconsciencial que depura a mente dos ruídos que "atrapalham" o foco e a concentração. 

E, por último, o que os monges hesicastas chamam de alojamento no coração, que é inscrever essa frase no coração, trazendo Jesus para ele, o que me acendeu o lampejo do encontro de culturas, já que tal técnica muito se assemelha ao próprio percurso do yoga em alguns de seus elementos (asana, pranayama, pratyahara, dharana, dhyana e samadhi).

Sem deixar de mencionar a importância, para a meditação cristã, da hesiquia, ou seja, do recolhimento solitário, o que é marca diferenciada do processo, já que estamos acostumados com a reunião para oração. 

Não se trata de processo excludente, mas, ao contrário, outra e mais uma forma de vivenciar Deus em nossa jornada, uma percepção de que nossa mente é nosso maior sabotador em relação a experiência empírica com Deus, sobretudo quando confundimos animismo e catarse com presença de Deus e fé

Por isso a autopercepção, longe de ser uma ancoragem na egoidade, é o reconhecimento de como o ego pode nos desviar do propósito, induzindo-nos a acreditar que estamos experienciando algo que, de fato, deriva mais do autoengano idiossincrático do que do encontro com Deus. 

Traumas, recalques, dores não clarificadas, ideias, valores e referências do inconsciente coletivo, tudo isso, no campo da mente e do emocional, pode trazer a falsa percepção de encontro com Deus, o que é bem evidenciado no processo meditativo, quando começamos a naturalmente observar essas estruturas durante a vigília. 

Outro momento dentro da meditação cristã de extrema importância diz respeito ao alojamento ou assentamento da mente nas coisas de Deus, não no sentido de mea culpa, expiação, comiseração no sentido punitivo a espelhar uma planilha de erros "durante o dia".

Aqui se trata da projeção do nosso universo motivacional na ideia de Deus e, com essa ideia, tudo se elabora, a partir de se invocar a oração perpétua de Jesus, que constitui a mais possante egrégora, pelo emblema que Cristo traz em razão do fato de ser Filho de Deus. 

Independentemente das frases acima reproduzidas marcarem espaços políticos de poder religioso nas diferentes concepções ou tradições (romana católica, ortodoxa, protestante, pentecostal e neopentecostal etc.), o que importa, aqui, é considerar o nome de Jesus como o aglutinador dessa energia acessada pelo meditador, motivo pelo qual é um ato solitário e pessoal ("tende piedade de MIM") que nos aproxima afetuosamente de Jesus... 

Tive a oportunidade de fazer um vídeo a respeito desses dois livros, compartilhando aqui com vocês. Espero que possa ser útil para quem está descobrindo Deus e Jesus em sua jornada. 



 







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