quarta-feira, 22 de abril de 2020

A completude do caminho do yoga

Estamos vivenciando um momento ímpar na história da civilização, principalmente por conta diversidade de conhecimento, culturas e valores compartilhada pelo acesso mais facilitado que o mundo virtual trouxe em relação às tradições e ensinamentos de outros povos.
Nesse contexto, muitos conhecimentos e práticas ancestrais e orientais, como as medicinas ayurvédica e chinesa, o tai chi chuan, a meditação e, sobretudo, o yoga, têm se popularizado no Ocidente e, especificamente, aqui no Brasil, nos últimos 10, 15 anos. 
Basta acessar uma rede social(instagramfacebooktwitter), para perceber uma vasta agenda de aulas on line, cursos ou formação via ensino à distância, lives, hangouts, postagens, sem falar na famosa selfie tirada ao se reproduzirem posturas (particularmente não as encaro como asanas, mas isso é assunto para outra postagem), redimensionando novas situações a conviver com a tradicional prática presencial no shala[1]
Esse cenário, contudo, quando não contextualiza minimamente o yoga em relação à sua essência, história e seu posicionamento enquanto darshana[2], pode difundir a falsa e estereotipada percepção de que yoga se limita à realização de posturas ritmadas de acordo com a respiração e sob os auspícios do mantra OM.
Empiricamente falando, o yoga revela uma senda de autoconhecimento, com forte conteúdo de compreensão de nossa essência para além dessa dimensão material, constituindo também a busca de superação da inquietude mental para se chegar a um estado contemplativo de transcendência. 
Não se confunde, portanto, apenas com o momento da prática no tapetinho, mas, antes, extrapola e, para além dele, ressignifica a senda do praticante que está disposto a imergir nesse universo rico e a reconfigurar a maneira com a qual, até então, sentia, percebia e vivenciava sua estadia no Planeta Terra. 
Para tanto, prática, estudo, meditação e, sobretudo, disciplina, desapego e resiliência, são elementos essenciais na integração dessa senda, que ora projeta um forte componente devocional, verdadeiro compromisso bhakta[3] em relação a alguma deidade ou à transcendência impessoal, ou, ainda, ao aspecto meramente de estudo e compreensão, presente no jnana-yoga[4]
Historicamente falando, o yoga traz um forte componente sócio-político, a partir da ideia de contestação à casta bramânica responsável por monopolizar os ritos e o conhecimento para o grupo social do sacerdote. 

Trata-se de um fluxo que toma corpo desde 1.600-1.220 anos antes de Cristo, com algumas pinceladas imersas nas Upanishads, passando pela compilação mais famosa, os Yoga Sutras de Patanjali (200 a.C-400 a.C.)
Com a gradativa consolidação do yoga como um sistema (darshana), não seria necessária a figura intermediária do sacerdote a oficiar sacrifícios de obtenção do soma[5], para se atingir a verdade em Brahma, num verdadeiro deslocamento da religiosidade formal e tradicional coletivo para a mística individual, retirando, aí, a força do acesso à divindade por meio de sacerdotes e centrando no caminho pessoal essa busca. 
No fragmento da Mundaka na versão de Swami Prabhavananda dos Upanishad[6] é possível perceber essa reflexão sobre o  acesso direto, a partir da austeridade, do autocontrole e da meditação em silêncio (1975, p. 60), razão pela qual faz muito sentido essa transição do estado ritualista para um no qual o rito é abolido para dar espaço a um modo místico e filosófico de agir, pensar, meditar etc. em encontro ao Eu Superior sem intermediação sacerdotal.
Nesse sentido, a própria ideia de senda individual, por meio da prática de um sadhana[7], por exemplo, dá a tônica da transição do rito para o caminho solitário que vai se elaborando ao longo do percurso, por intermédio da vivência dos angas[8] (membros), revelando para o praticante seu Eu Superior, por meio do discernimento e da elevação.
Esse, em especial, é o ponto central que dissocia o yoga de uma prática lúdica, de natureza psicofísica: yama, niyama, asana, pranayama, pratyahara, dharana, dhyana e samadhi, os 8 angani do Yoga, retratados classicamente nos Yoga Sutras de Patanjali, especificamente no capítulo 2-29, chamado Sadhana. 
Panoramicamente falando (pois falaremos em cada um), yamas são preceitos éticos e, portanto, de observância interna e pessoal pelo praticante, no dia-a-dia de sua conduta: ahiṁsā, satya, asteya, brahmacharya e aparigraha
Em linhas gerais, ahiṁsā é a prática de não violência, um preceito genérico, que não apenas se relaciona ao aspecto qualitativamente físico, mas a absolutamente tudo que diz respeito à agressividade, refletindo, em nossa jornada no dia-a-dia, a modulação de nossas conduta, para que, não nos violentemos ou projetemos nos demais seres essa violência, em nível algum.
Satya é a verdade maior, que deriva do coração desapegado, ou seja, à coerência entre o pensar, falar, agir e viver. Daí surgem esses reflexos e, dentro deles, as irradiações. Um sentimento escondido, não comunicado sob a máscara de "está tudo ótimo", uma "volta" ou "ardil" que damos em nós mesmos e projetamos no outro, impedindo-o de escolher livremente.
Asteya se relaciona com a abstenção em não se apropriar do que não lhe pertence que diz respeito à honestidade em pensamento, palavra, ação, modo de vida. Não se trata apenas de não furtar objeto, mas de toda prática que diz respeito a produzir desequilíbrio em relação ao outro nesse fluxo de ir e vir de abundância, em todos os sentidos.
Brahmacharya relaciona-se à prática de uma vida espiritual regrada (BARBOSA, 2015, p. 89), marcada pela austeridade na ação dentro da conduta, muitas vezes confundida com o mero celibato, mas com sentido bem mais amplo do que isso. 
Aparigraha encaminha para o não cobiçar, contentando-se com sua realidade despegada. 
Já os nyamas estão relacionados às práticas a serem observadas pelo yogui ou pela yogini, sendo, portanto, a manifestação externa de suas ações: sauca, santosah ou santosha, tapas, svadhyaya, isvarapranidhana.  
Sauca constitui a limpeza, tanto externa, como interna, mental, a exemplo do que fazemos com os kriyas. Santosah ou santosha revela o contentamento interno, um olhar de plenificação, de bastar a si com o que se tem ou se alcança. 
Tapas representa sacrifício ou, como fala Feuerstein, a capacidade de suportar extremos (2005, p. 236) mantendo o brilho interno. 
Svadhyaya relaciona-se ao estudo e meditação, almejando o saber interior.
Ishvarapranidhana constitui a entrega, oferecendo a prática ao mestre supremo e que, individualizado, reside no coração do yogui ou da yoguini
Asana é o "assento firme e confortável" (Patanjali), enquanto o pranayama constitui o fluxo de inspiração e expiração, bem como retenção (kumbhaka) do prana, por intermédio da consciência do que isso significa em termos de sutilidade.  
Pratyahara se manifesta no recolhimento dos sentidos (audição, olfato, tato, visão, paladar), evitando, assim, a conexão, por intermédio da identidade com o objeto externo disposto no chamado mundo visível ou perceptível (que é uma imitação ou representação). 
Dharana constitui a "fixação da mente (citta) em uma território" (BARBOSA, 2015, p. 101), enquanto dhyana é o foco ou a fixação da atenção em um único objeto, com convicção, atingindo-se, então, o samadhi, por meio do esvaziamento da "forma autêntica e semelhante à natureza do objeto" (BARBOSA, p. 101).
Assim, não constitui o yoga uma mera prática física e lúdica, mas, antes, um modo de vida, desde o aspecto espiritual, passando pelo ético, emocional, psicológico, mental e físico, razão pela qual não pode ser retratado superficialmente como uma sequência de poses, muito menos pelo aspecto meramente meditativo, pois essa polarização acaba desfocando da beleza e da profundidade desse sistema filosófico.
Dentro disso, o yoga é uma senda, um percurso, um caminho, e não um instrumental a ser acionado momentaneamente, por ocasião das aulas ou do convívio familiar, para se pretender mudar de vida e "sair da Matrix" (esse é o senso comum que tem se estabelecido).
É uma dedicação, dia após dia, por intermédio do enfrentamento as ciladas da mente arredia e indisciplinada, que nos faz cair no auto engano. 
O aporte imagético e o discurso subjacente a ele são também ciladas egoicas que, nesse sentido, atribui as chamadas fraquezas ao yoga moderno, que acaba reproduzindo o dilema estereotipado.
Isso requer uma profunda auto-observação em relação aos movimentos internos de fomento à concorrência, crítica velada, isso e tudo mais, dão a tônica do que o yoga moderno precisa depurar. 
Acredito que o caminho para isso seja desenvolver uma estratégia de abordagem orgânica, sensível, mas, ao mesmo tempo consistente, que se escoime nos textos, na leitura das peças mais relevantes e, sobretudo, na introdução de seus sentidos na prática diária do yogui
Nesse sentido, os cursos de formação têm um papel importantíssimo, quando comprometidos com essa verdade, pois permitem uma imersão profunda nesse universo desconhecido, alavancando o mergulho no próprio universo desconhecido do praticante, revelando seu dharma[9]
Por isso acredito que formação vertical ainda seja muito importante. Aprender asana e realizá-lo é importante, mas não representa a totalidade da experiência edificante que o yoga pode oferecer em termos de autonomia existencial. 
Para os professores-facilitadores-instrutores, creio que deva ser interessante introduzir, nas práticas, temas e elementos filosóficos, compartilhando, assim, informações congruentes sobre o yoga
Para os praticantes, creio que a disciplina e o foco na necessidade de estudar os textos seja prioritário (jnana yoga), devotando-se ao sagrado (bhakti yoga), realizando ações (karma yoga), imergindo na meditação profunda (raja yoga) e também no incremento postural (hatha yoga), advindo, daí, o ajustamento do Eu ao Si-próprio, ou, como presente na etimologia da palavra yuj, jungir, integrar ou unir!
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[1] Shala significa "casa".
[2] Darsana traz a ideia de visão ou vista.
[3] Bhakta significa devoto, do bhakti, devoção, que origina o bhakti yoga, yoga da devoção.
[4] Jnana yoga, traduzido como yoga do conhecimento, estudo.
[5] Soma, traduzido como extrato, libação usada nos rituais antigos védicos.
[6] Upanishads são textos antigos védicos, transmitidos oralmente. 
[7] Sadhana significa um caminho ou meio, senda. 
[8] Angas, traduzindo para membros, ou elementos componentes do yoga.
[9] Dharma, aqui empregado no sentido de vocação, dentro do caminho de austeridade e retidão na descoberta do Eu-em Si. 

2 comentários:

  1. Excelente texto! Que grande surpresa ter te conhecido e estarmos agora trilhando juntas este imenso caminho sagrado! Muito grata! Flávia Reviverde :-)

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    1. Que bom que vc gostou, Flávia, pois sua opinião é muito importante para mim! Sou grata por nossos caminhos se encontrarem! Vamos lá, caminhando!!!! Namastê!!

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