sábado, 2 de março de 2019

Quando rotinas não são rotinas: a benignidade do dinacharya e a elevação consciencial que desafia o ego

Um dia desses em que estava em um "pé-de-prosa" virtual com uma grande amiga, veio o assunto "rotinas", a partir da ideia inicial de mesmice, dogma ou repetição automática de algum ato, alguma liturgia ou comportamento em relação ao qual, dada a obrigatoriedade, podemos oferecer resistência.

Rotina de trabalho, rotina de relacionamento, rotina de trânsito: quando nos pegamos a reproduzir mental e emocionalmente a palavra, logo a mente incauta nos encaminha para a classificação em algo que não é prazeroso, não é mesmo? 

Até mesmo o lazer, quando submetido a tal "rotina", deixa de ter um significado despojado de ociosidade criativa, para se tornar um fardo, sujeito ao relógio e aos humores alterados das pessoas que se obrigam a serem felizes na reprodução automática das programações de final de semana pós-trabalho (ops, de novo, a rotina!).

Dentro disso, quantas vezes nos pegamos a empunhar a bandeira da liberdade, fazendo referência ao nosso espírito "livre", dizendo aos quatro cantos que "toda rotina é cansativa e entediante", "eu não nasci para rotina" ou "eu sou livre e não sigo rotinas"? 

Ou, ainda, quantas vezes afirmamos para nós mesmos (num reforço egoico para nos tentar convencer) que não nascemos para nos "acorrentar nas regras impostas pelo sistema de controle" (ah, de novo, o tal sistema matricial, ou, na bola da vez, na Matrix do sistema de crenças)?

Pois é, a palavra rotina popularizou-se semanticamente como sinônimo de aprisionamento, regra ou condicionamento, trazendo automaticamente à mente a aversão a toda e qualquer atividade que seja uma constante em nossas vidas, pois "tudo que é rotineiro entedia e cai no marasmo".

Em idos de pós-modernidade espiritual, holística, consciencial e outros nomes para o fenômeno de transição que estamos experienciando, falar em rotina é declarar guerra aos que se veem como despertos, conscientes e livres das amarras da tridimensionalidade. Ávidos em encontrar a tal saída do sistema, tudo que é importo realmente incomoda. 

A pergunta que faço é: incomoda a quem ou o que? 

À consciência ou ao ego? Como saber a diferença?

Primeiro, a consciência não "se incomoda", não "se inquieta", muito menos se sente amarrada ou oprimida. Ela não atribui predicativos à experiência, porque os predicativos são apenas critérios mentais de classificação que o ego utiliza para se identificar com a experiência e se convencer de sua eternidade, num ir e vir entre passado e futuro, os vetores da ilusão criada diante da realidade material do aqui e do agora tão desejado e, ao mesmo tempo, inacessível. 

Quem se incomoda, julga, avalia, dá desculpas é o ego, pois sabe que a elevação consciencial acarretará sua diluição, o que traz medo, pois o diluir significa não mais existir nessa configuração tridimensional. 

Além disso, a consciência não precisa "resistir" ao que se pratica pelo bem de nossa organicidade. O ego sim. Esse se desculpa, culpa-se o tempo todo por não cumprir as demandas e exigências da autoimagem de perfeição que criou para nos assombrar e distrair. 

Ele diz que não consegue levantar cedo para meditar, que sai atrasado para o trabalho e não dá tempo. Que não tem paciência para seguir uma rotina imposta pelos "arcontes da Matrix" (acho ótima essa referência para projetar desculpa pela distração egoica), que está com dor no braço, na perna. Que o cachorro atrapalha a meditação. Que é muito difícil. Que é isso, que é aquilo. 

Ego...apenas nosso querido desejando mais atenção.

A consciência, ao contrário,  move-nos para o fluxo porque, dentro de nós, no âmago de nossa essência divina, temos o discernimento em saber que determinada "regra" é essencial para nossa existência tridimensional enquanto nela ainda estamos. Ela não reconhece, pois, a rotina como algo abjeto, opressivo, mas, antes, como algo relevante e vital para que possamos nos desenvolver. 

Aliás, os predicativos "relevante", "vital", "opressor" etc. não fazem mais qualquer sentido para a consciência, pois, transcendendo a binariedade (bem versus mal, belo versus feio e tudo que é catalogação do ego que necessita se identificar para saber que está vivo), ela apenas flui, faz e realiza, sem julgamentos. 

Apenas vivencia naturalmente a plenitude e o preenchimento interno no esvaziamento do ego, condições que naturalmente nos encaminham para o despertar e a transmutação. 

Com isso, a palavra rotina adquire um colorido que implode a ideia arcaica de opressão egoica, para ser edificada à sacralidade em termos de um ritual de benignidade a ser realizado em benefício de nosso corpo, nossa mente, alma, espírito e, superando tudo, nossa CONSCIÊNCIA

Eis o sentido ressignificado à palavra rotina, dentro do que tenho experienciado num movimento que retomei, agora, renovado, na vida de rotinas de benignidade: dinacharya, do sânscrito दिनचर्या, conduta diária).

Trata-se da rotina diária do sistema de ayurveda, compondo o tripé do que tenho sentido de plenitude praticando yoga e meditação. Uma prática que alinha corpo, mente e consciência, integrando nossos corpos e nos harmonizando com os ciclos da Natureza.

Regra? 

Para o meu ego, nos dias em que acordo com preguiça, impaciente, apressada, sim, claro! 

Afinal, sempre é muito confortável ler muitos livros, assistir muitos hangouts e muitas lives no youtube, participar de grupos eco-eso-alien-ativistas no whatsapp, sermos conhecedores de todas as teorias da conspiração cósmica e usar isso tudo como desculpa para não integrar consciência e corpo num simples gesto de respirar prana.

Enfim, não estou falando no plano de teorias: estou falando de realizar, agir, fazer, mexer o esqueleto e lidar adequadamente com o ego, o bastante para que ela não nos distraia tanto dizendo que "na semana que vem começo a meditar".

A rotina que o ego nomina como opressão nada mais é do que a projeção da sombra do que ele rejeita, o que, quase sempre, é o necessário para nosso aprimoramento pessoal. Dito de outra forma: o que mais rejeitamos é o que mais precisamos trabalhar internamente para transcender o obstáculo.

No dinacharya aprendemos a pacificar a mente, quer seja por meio da desaceleração mental, da respiração ou, ainda, no mimo com nosso corpo na oleação do abhyanga.

O dia da rotina de benignidade começa cedo aqui em casa: por volta das 05h00, sem despertador e embalada pela sintonia com os ciclos da Natureza, acordo, agradeço ao Universo pela dádiva de estar presente. 

Nada de ficar pedindo, só GRATIDÃO. Quando se troca o discurso de demanda pelo protagonismo do fluxo criativo e apenas se agradece, tudo muda!

Hora da rotina matinal, que inclui a evacuação, a raspagem do ama (toxinas) contidas na língua e da limpeza do nariz com o lota, bem como uma água morna com limão antes, para estimular o sistema gastrointestinal, o centro de todo o sistema da ayurveda.

Depois dessa parte rotineira, é hora da automassagem, chamada abhyanga, feita da cabeça aos pés, em movimentos circulares e em sentido horário, utilizando óleo de côco (uso esse por conta do dosha Pitta, mas em outros casos, usa-se bastante o óleo de gergelim morno, para acordar Kapha e ancorar Vata). 

Trata-se de um momento de maior intensidade do sentimento mais puro de leveza e bem-estar, de ancoramento e plenitude que já senti na vida, não traduzível por palavras, muito menos nesse texto. 

Daí, sugestão: faça!!! E não se limite à regra auto imposta de não ter regra!

Depois da massagem, que dura, em média, 30-40 minutos, um banho calmo, morno, complementando a fricção da abhyanga faz muito bem à alma, seguido de uma prática de yoga para tonificar músculos, acordar o corpo e trazer a sensação de pertencimento e despertar. 

Respirar é essencial e, para esse momento, alguns pranayamas conscientes, com foco e atenção no momento, são a forma mais sutil de dar boas-vindas à vida: afinal, quando aqui aportamos, o primeiro ato fora do útero é o de respirar o prana. 

Tudo pronto, enfim, para a meditação! Um tempo fora-do-tempo-e-no-pertencimento. Comecei com 5 minutos, impaciente...com o tempo fui para 10, 20 e, quando dei por mim, já me peguei uma hora fora de tudo e de mim. Importante esse momento de despojamento para que a consciência se sobreleve aos ditames do ego que deseja impor sua vontade de ser feliz...

Café-da-manhã? Sim, claro! Dá tempo! Dá tempo? Dá um tempo-no-tempo e acorde cedo! 

É lindo ver o Sol, o céu, os pássaros cantando para anunciar a chegada de um novo dia! É uma "rotina" que elonga o danado do tempo, deixando-nos mais despertas, atentas, conscientes e, ao mesmo tempo, relaxadas.

Frutas de acordo com seu organismo, ghee, tapioca, mingau. Basta combinar e, para isso, nada melhor que a tradição ayurvédica, que alia o sabor à propriedade terapêutica dos alimentos, sendo a amálgama de todo esse processo integrativo. 

Chás durante o dia e almoço entre 11h30 e 13h00, no máximo, pois é o momento em que o agni está a todo vapor, preparando, depois, para a virada da tarde, ocasião em que podemos fazer um lanche modulado com o café ou, então, dependendo do dosha e da fome, aguardar uma sopinha quentinha e nutritiva para finalizar o dia às 20h00.

Essa é, sem dúvida, uma "rotina" feliz, pois, integrando mente, corpo, alma e consciência, tudo flui na vida, que é o próprio fluxo em si. Sem cobranças, medos ou sabotagens. 

Apenas a vida que cocriamos, de acordo com os potenciais que desenvolvemos nesse dínamo chamado dinacharya, que nos eleva e afaga, ao mesmo tempo em que aceita e agradece!

Namasté!!!


9 comentários:

  1. Realmente muito inspirador e verdadeiro, você realmente me inspira e vou meditar muito a respeito deste texto que tocou profundamente minha essência, gratidão por sábias experiências e palavras que adicam a alma e acalma o ego dando uma nova interpretação a palavra " ROTINA"

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    1. Inspirei-me nas situações da minha vida, quando eu mesma me vejo na sabotagem diante do que se revela benigno para meu crescimento. Gratidão!!!

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  2. Como sempre.....já compartilhei com pessoas que estão querendo entrar nessa linha.Bjs

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  3. Maravilhada com que li, sinto me mais leve, disposta a mudar o meu viver. Surge em mim uma vontade enorme de aprender meditar. Obrigada!!!

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    1. Que legal! Isso, as mudanças vêm sempre assim, a partir de uma inspiração e um chamado. Trata-se do chamado da alma, que vem sempre que nos permitimos. Meditar é tudo de bom! Comece, sim! Super apoiada!

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  4. Muito bom Ale, já irei compartilhar e já ajudou aqui a lembrar nos dias que o ego fala alto. Beijo no coração

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    1. Que bom poder ter seu feedback, Mônica! É isso mesmo, nosso ego é bem esperto! Mas estamos no fluxo! Gratidão!

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  5. Esse texto me inspira e me alimenta. Bora pra prática!!
    Grata, querida Alê 🌻

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