quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

De femininos, feminismos e sagrados: a regeneração do ventre ao acalanto da Terra

Fonte da imagem: https://dalilaprosaepoesia.files.wordpress.com/2011/04/mae-terra1.jpg

Quando iniciei esse blog estava fortemente extasiada com a literatura de gênero e feminismo, incorporada, não-raro, ao discurso forte e austero, doído até, de crítica a um modelo androcêntrico de elaboração das relações humanas que privilegiava o homem em detrimento ao respeito e à reverência ao Sagrado Feminino.

Somava-se a isso a bagagem de força e autonomia que a mitologia celta impele às mulheres, protagonistas de suas sagas bem-sucedidas de vitórias e conquistas, pois sempre acionava uma história das heroínas que venciam o medo e a desqualificação de um protótipo de masculino ainda não consciente do papel sacral que a mulher desempenha em termos de força, determinação, criação e potencial.

Passado um tempo e embalada por uma gama de experiências enriquecedoras, tenho refletido bastante sobre as relações entre as distintas percepções de femininos, feminismos, bem como sua articulação com a milenar concepção de reverência e sacralidade. 

O que mudou?

Fonte: https://adaptingtograce.files.wordpress.com/2013/05/mother-earth.jpg
Os arquétipos e os estereótipos talvez não muito, mas a compreensão pessoal com que passei a perceber que cada uma de nós decide ressignificar as percepções a respeito do tema. 

Afinal, também é cada uma de nós a trilhar uma senda que lhe é própria, o que traz certo casuísmo ao que se vivencia, o bastante para não fazer muito sentido pretender construir "teorias explicativas" para todas, ante a pluralidade de vivências nesse maravilhoso sentido do que é ser mulher. 

Tenho cada vez mais percebido que não se constrange, força, violenta ou agride uma mulher, compelindo-a "a fórceps" a "tomar consciência" dos processos de desqualificação e ofensa, pois essa tentativa emblemática e militante, sem a devida cautela de mergulhar no universo da alteridade, pode mais revitimizar do que restituir alguém.

Isso veio à tona enquanto advogada para mulheres em situação de violência doméstica, ocasião em que meu confortável mundo de militância feminista universalista começou a quedar diante do pluralismo que se abria diante dos meus olhos. 

Com o doutorado, então, intensificou-se o processo. 

Não mais fui a mesma em termos de reflexão sobre as dimensões do que é viver a experiência de ser mulher. Lembro-me de ter participado, certa vez, de uma oficina realizada por uma colega da assistência social, que me convidou a trabalhar com algumas mulheres em situação de violência no Núcleo de Assistência Jurídica da Universidade de Brasília ) localizado na Ceilândia.

Elaborei uma tarde de leituras sobre as mais famosas heroínas celtas, aproveitando uma tarde de sábado para falar sobre Macha, a rainha celta dos cavalos, bem como para compartilhar um momento aprazível de yogaterapia. 

Nada de livros - a não ser de contos - teorias, academicismos. Apenas a Natureza e nós, mulheres, embaladas em nossos colchonetes e motivadas ao conhecimento de nossos corpos. 

Pois bem.

Revivendo isso no meu pequeno livro de memórias, logo vem à tona uma cerimônia muito comum no meio pagão - sobretudo wiccano - chamada reconsagração do ventre. Uma espécie de conscientização sobre as dores eventualmente provocadas pelo androcentrismo, na qual se reelabora uma nova relação com o ventre e o útero, pontos centrais da conversa de hoje. 

O útero, para os antigos, representava o caldeirão da vida, arcabouço de toda criação. Por esse motivo - até o momento em que a participação masculina no processo reprodutivo ficou mais clara - a mulher, nós, mulheres, éramos consideradas deusas e artífices de toda a sacralidade. 

O sangue menstrual, o útero e o ventre agregam, pois, uma egrégora ancestral de fortíssima relação com a capacidade criativa, potencializadora, fecundante e próspera, em uma relação de intrínseca harmonia. 

Não precisa muito: lunações, estações do ano, ciclos e processos de amadurecimento. Tudo exala à tal liame invisível, que marca o papel divinizado - e, ao mesmo tempo, mundano - acometido a nós, mulheres sagradas de Anu.

Quando nossa capacidade criativa se encontra abalada, o útero grita. Enfraquece, adoece. Não é sem propósito que boa parte da literatura esotérica e psicológica coliga ao útero as doenças somatizadas de desequilíbrio no feminino. 

Negação de si, desqualificação do parceiro, pressão. 

Tudo isso motiva feridas que passariam inicialmente despercebidas se, ao final, a recorrência não levasse nossa alma para a precipitação somática. Assim como a Terra precisa se recompor, nosso útero demanda atenção e momentos de descanso e silêncio. 

Esse é o trabalho de um ritual de reconsagração, no qual se restitui a dignificação de nosso útero, para que nos lembremos sempre de nossa força vital, que não pode ser subjugada. Aliás, esse é um árduo trabalho de mudança de paradigma para o modelo androcêntrico, pois o caminho ainda é repleto de obstáculos (talvez a falta de consciência de alguns - muitos - homens) que minam a emancipação plena. 

Quando estamos em um relacionamento hostil ao feminino, usualmente percebemos doenças de toda sorte: cólicas, infecções, ovários policísticos, perda de libido. 

São sinais de alerta para que possamos sobrestar as agressões veladas, sentidas, contudo, no plano sutil, pela delicadeza de nossos órgãos. Não somos repositórios do unilateral prazer masculino (isso em termos de relacionamentos hetero), mas, antes, um caldeirão sensorial de sensibilidade e apuração criativa. 

Muitos homens não compreendem isso porque, afinal, estão reproduzindo a lógica do binário agressividade/submissão, pretendendo, com isso, manter a ideia e o comportamento hostil, pouco voltado ao autoconhecimento. 

Com isso, alguns homens ferem, atacam, desqualificam e sequer acham que estão fazendo isso, por acreditarem piamente que o plano mental e discursivo da racionalidade é a única e legítima forma de elaborar relacionamentos. Eis o primeiro passo para o subjugo do ventre, bem como para o enclausuramento da potencialidade criativa de uma mulher.

É o que se chama vulgarmente de "conquista". A mulher haveria de ser conquistada, como um continente inexplorado - a Terra - fecundo para que a tomada de riquezas possa ser empreendida de maneira incólume. Mas, abaixo da superficialidade, nada passa incólume. 

O ventre é violado. Tudo em nome de uma necessidade premente de autoafirmação com que certos representantes do masculino ainda se enxergam, na miopia do descaso com sua própria parcela de sensibilidade, pois isso, ao que parece aos olhos desse estereótipo, retiraria a masculinidade ou, quem sabe, constrangeria o homem não sociabilizado na igualdade. 

Meus 42 anos trouxeram à tona a contemplação de tudo isso. Não mais - talvez essa seja a tônica agora - com o ódio entranhado, mas com a gratidão de observar o fluxo de tal movimentação. 

Se, por um lado, ninguém muda ninguém - outra sábia lição - e não podemos esperar mais do que a pessoa pode oferecer (o que é justo e libertário), por outro, não é justo e razoável com nossa alma colocar nosso útero à disposição para os processos atávicos de desqualificação. 

Trata-se de agradecer e deixar o fluxo da vida seguir seu rumo. E, com ele, as pessoas e, sobretudo, nós. Precisamos, sim, seguir a vida e o pulsar da batida de nosso coração, que sempre procura a felicidade na plenitude da bem-aventurança!








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