domingo, 29 de março de 2015

Que padrão e que beleza? A opressão ingênua dos programas televisivos e o desserviço à diversidade

Fonte da imagem: http://www.chat-feminino.com/imagens/posts/estereotipos.jpg
Nos domingos frugais em que me entrego à celebração do ócio contemplativo, costumo fazer "pesquisas de campo" em torno do tema - estética e feminino. Para obter sucesso em minha intentada, assisto toda sorte de programas voltados ao público feminino, sobretudo no Lifetime e na GNT, canais usualmente destinados à "valorização da mulher". 

Sinceramente? Cada vez que ligo a televisão, fico mais confusa. Talvez não saiba bem o que o feminino quer dizer, ou, na pior hipótese, o que esses canais querem, ao final, transmitir como mensagem de uma vida e uma estética politicamente corretas. Sinto-me desconcertada diante do que pode ser uma mensagem equivocada a ser transmitida, em massa, para mulheres ávidas por aceitação e amor, dispostas, assim, a entrar em uma montanha-russa emocional que acaba colocando em xeque-mate toda e qualquer tentativa de emancipação da mulher dos estereótipos androcêntricos e machistas.

Pérolas da vez nesta semana: primeiro, um programa chamado Dormindo com meu estilista, no qual os maridos saem a campo para as compras das roupas que acreditam revitalizar suas parceiras, visivelmente cansadas pela tarefa da maternidade e administração do lar (não seria mais fácil entender que o problema não está na roupa, mas na unilateralidade das funções atribuídas para a mulher? Ou seja, ao invés de se comprarem roupas, simplesmente dividirem-se as tarefas? Enfim...).

A história da semana aborda uma jovem dona-de-casa de 29 anos - já aparentando 40 - que emagreceu vertiginosamente depois do segundo filho, o bastante para fazer com que eu suspeitasse de anorexia, já que, ao menos na frente das câmeras, ela não conseguia se enxergar macérrima (esquálida). 

Sempre achava gorda, dado o trauma da aquisição de quilos na segunda gestação [abrindo uma brecha aqui para comentar o que acredito ser um desvio de perspectiva, pois algumas mulheres atribuem o nome "gordura" ao que é, por excelência, a protuberância da barriga oriunda da gravidez. Isso me leva a refletir se o problema está realmente no excesso de peso ou em não se aceitar, durante a gravidez, na inerente mudança de corpo]. 

Detentora de uma visível baixa autoestima, recusava-se a acreditar no seu marido, que sempre lhe dizia ser linda e maravilhosa, vestindo moletons, roupas folgadas e jeans. Cara lavada, rabo de cavalo, óculos: acima de tudo, esquálida. Esquálida, mas com a autoimagem de uma pessoa obesa.

U$7.500 foram entregues para o marido que, sem eira nem beira, começou um périplo de compras do que entendia serem roupas mais adequadas à esposa. Depois de muita aquisição entendida pela hostess do programa como "nada a ver", ele revitaliza o guarda-roupa da esposa, incrementando-o com tons das cores mais alegres, roupas mais justas e sapatos diferentes dos tênis que ela costumava calçar.

Ela, então, toma um banho de loja, indo ao salão, cortando e delineando o cabelo, fazendo maquiagem e, ao final, apresentando-se para toda a família com uma das roupas novas. Sente-se bem, animada e revitalizada, pois, agora, recém-saída da concha de timidez e encobrimento na qual se colocou depois de dar à luz, voltou à tona como uma verdadeira Fênix, satisfazendo a seu marido-estilista, que desejava a volta da "esposa de antes".

Toda a família a legitima, soltando um uníssono "Ohhhhhh" quando, enfim, a jovem esposa aporta no horizonte da passarela, vestida de vermelho, cabelos na chapinha, batom rubro. 

Esse é o cenário...

Não estou discutindo se usar amarelo ou azul tornam uma pessoa mais bonita ou feia. Muito menos estou apregoando uma nova "queima de sutiãs", achando que a moça tinha mais que andar de moleton (até porque detesto moleston e tênis, que me lembram esteticamente o uniforme impessoal dos colégios em que estudei).

O que chamou minha atenção, contudo, foi o pragmatismo com que se procura, nesse programa, anestesiar o que estruturalmente é o epicentro, ao meu ver, de todo o mergulho na sombra: a insistência de manutenção de estereótipos estéticos, a partir dos quais se nega beleza e validade ao que não está de acordo com o paradigma

Saltos altos, roupas justas, muito batom e transformação externa. Esse é o retrato do modelo de beleza que se cobra da mulher moderna, ainda que, no caso da moça, vá se ficar à beira de um fogão (ela havia largado o emprego em nome do lar e dos filhos, o velho e bom discurso dos papeis dicotomizados segundo a dobradinha sexo/gênero). 

Tudo o que não estiver nesse molde não é bonito. Repele-se como a uma chaga, pretendendo-se, com isso, formular uma homogeneização, em larga escala, de todas as mulheres do mundo, negando, assim, as diferenças e enaltecendo uma pasteurização de todas a partir dos modelos além-Equador.

O outro programa - brasileiro, diga-se de passagem - chama-se Troca de Estilos e envolve duas amigas que, diante das câmeras, fazem acusações veladas e recíprocas, em relação ao que cada uma mais detesta no estilo da outra. 

Se eu não estivesse ouvindo a hostess falar em português, diria estar diante de mais um programa anglo-americano, pois os modelos são exatamente os mesmos daqueles transmitidos na Terra do Tio Sam e na Oropa. Padrão, enfim. Mas, neste caso, enganei-me, pois o programa é brasileiro mesmo e, dentro do meu objetivo de pesquisar, arrisquei-me a continuar no canal.

O desafio da semana: uma amiga, a "despojada" - segundo valoração tanto da cara-metade, quanto dos profissionais de moda que prestam consultoria para o programa - e a "patricinha", estereótipo atribuído pela amiga, mas não validado pelos mesmos profissionais.

A despojada tinha um estilo de vestir alternativo para os padrões de moda transmitidos e defendidos no programa: era adepta das compras em feirinhas hippies, detestava saltos, abusava das saias coloridas. Um primor de simplicidade, coroada pelos acessórios artesanais brasileiros (colares de contas de açaí, pulseiras de palha) a realçar a beleza "cara limpa", já que a jovem, como ela mesma disse, detestava maquiagem.
Fonte da imagem:http://www.justlia.com.br/wp-content/uploads/2013/10/hippie1.jpg 
Sua amiga "patricinha", por outro lado, era um outdoor ambulante (visão da amiga despojada), o oposto da amiga: o que se via em seu visual era a poluição das marcas e das etiquetas que sobrepujavam o estilo do qual não abria mão para as baladas cariocas.

Tudo nela realçava a indústria famigerada do consumo, desde a típica bolsa famosa a tiracolo (no antebraço), passando pelo salto alto (extremamente alto, de arrepiar literalmente a coluna) e a pesada maquiagem, que me fez questionar como ela poderia fazer para retirá-la todos os dias (com martelo e formão?).

Hipoteticamente, cada uma delas haveria de incorporar um pouco das observações que faziam em relação uma à outra. Mas o que vi, sinceramente, foi a compactação da amiga desencanada em uma forma de bolo que nada tinha a ver, ao final, não só com o estilo de roupa, mas de vida. 

A mulher que adquiria a roupa da feirinha - fora do circuito das grandes indústrias que se prevalecem do trabalho escravo ou da exploração de mão-de-obra barata, contratada em países periféricos - cedeu espaço para a chamada "hippie chique", ou seja, aquela pessoa que aparenta ter um estilo alternativo, mas que se alimenta da moda paradigmática, fomentando a roda vida do atentado contínuo à sustentabilidade.

Sumiu a garota preocupada com o meio ambiente, e, no lugar dela, apareceu uma com petróleo na boca (lembrando que alguns batons têm o mineral na composição ou, ainda, testam o produto em animais, para que as boquinhas das mulheres não tenham reações alérgicas). 

Até em cima de um salto colocaram a moça, sempre ovacionada pela equipe de experts a reproduzir - com a autoridade que lhes confere a pesada indústria da moda - os anseios das indústrias, mais interessadas em...vender.

A patricinha, por seu turno, cedeu o bastante para retirar as etiquetas da visibilidade das roupas, encobrindo-as no que é a mera repetição do estereótipo, em outras bases: virou hipster, feliz da vida, crendo piamente que sua atitude acarretará a mudança dos padrões climáticos da Natureza em hecatombe nuclear.

Moral da história: todo mundo saiu feliz. Uma, a consciente, anestesiou-se com o torpor da moda em decomposição, cedendo em nome da amizade. A outra, achando mesmo ter saído da Matrix, trocou seis por meia dúzia. 

E a espectadora? 

Bom, um pouco de senso crítico e canja de galinha não fazem mal à prudência: moda é uma questão de se sentir bem internamente, estando, ou não, no paradigma dominante. O que importa é a consciência do próprio valor, pois, a partir dela, a estima se eleva e nos tornamos pessoas mais imunes aos ilusórios tentáculos da indústria da moda: mais reflexão e menos marca.

Fonte da imagem: https://giginunes.files.wordpress.com/2011/05/tumblr_lfhlnjgh9u1qdla5oo1_500.jpg





Um comentário:

  1. Já assisti programas como esses. Mulheres são processadas e enlatadas para serem parte desse estilo "Mulher Moderna". Salto, vestido, roupas justas, decotes, maquiagens e perfumes...Quem afinal ditou esses esteriótipos?
    Partindo do ponto de que vivemos em uma sociedade machista e que o mundo, ainda, é predominantemente androcêntrico, penso que o Machismo está revestido em pele de Capitalismo, se passando muitas vezes por um inocente cordeiro da beleza.
    Muitas mulheres buscam alcançar esses esteriótipos "impostos" socialmente, para fazerem parte de um grupo de pessoas, para serem aceitas em determinados ambientes, para se sentirem "mais mulheres" e/ou para agradarem ou atrair os homens. O que acredito ser este último motivo o que mais dominante. O que é triste! O mais saudável seria a mulher gostar de si mesma, se amar, se respeitar, se vestir como ELA estiver afim de se vestir e se portar naquele dia, mas para ela. Porém, não é tão simples assim...Pessoalmente, sou uma pessoa que prima pelo conforto. Não gosto de ter um estilo definido, me visto de acordo com meus estado de espírito, mas também, de acordo com o lugar que irei frequentar, haja vista que duas vezes já fui impedida de entrar no STF por não estar usando blazer.
    Na faculdade, quando não tenho que ir ao Fórum depois da aula, me visto de maneira simples e confortável, afinal, estou indo assistir aula e reter o conhecimento é o que mais importa no momento em sala. No entanto, já ouvi comentários de várias colegAs, sim, mulheres, me criticando pela maneira como visto e em acharem um absurdo eu "ter conseguido" me casar me vestindo do jeito que me visto! Hahahahaha...
    Primeiro, há muitas mulheres machistas e cegas por esse sistema patriarcal-capitalista-consumista-sexualista-opressor.
    Segundo, essas mulheres machistas se deixam induzir e reproduzem os padrões estéticos, oprimindo outras mulheres.
    Terceiro, tenho a impressão de que corresponder aos padrões estéticos impostos, emana uma mensagem subliminar de poder.
    Quarto, o relato sobre o último programa de TV, onde amigas criticam o estilo da outra, só nos confirma que o Machismo, continua querendo que nós, MULHERES, continuemos nos degladiando por eles, homens ou por outras coisas fúteis, enquanto eles continuam nos dominando, nos oprimindo, ganhando salários mais altos, dominando cenários importantes como a política, por exemplo, onde o Congresso Nacional tem a sua maioria composta por homens, no judiciário a mesma coisa, e em demais esferas importantes de nossa sociedade que as mulheres ainda não conseguiram alcançar pois estão presas, algemadas, com esse incômodo cotidiano e pergunta tão complexa, latente em nosso inconsciente: "O que é ser mulher?".
    Sejamos SOLIDÁRIAS uma com as outras, MULHERES!!! Viva a SORORIDADE!!!

    ResponderExcluir