sábado, 19 de fevereiro de 2011

Odisseia de um médico-monstro: a pequenez da infância

Adailson acordou naquela manhã acinzentada atrasado para a escola, assustado pelo grito incessante de sua esforçada mãe, que preparava com esmero o simples e fumegante café-da-manhã para seus três filhos.

Abandonada pelo marido após anos de dedicação e sacrifício, não lhe sobrava muito ao final do mês, mas, zelosa, nunca deixava faltar à mesa dos filhos um bom café preto com pão e manteiga: o bastante para enganar a fome de todos, ainda que por alguns parcos momentos até à espera do feijão ralo do meio-dia.

O deleite de Adailson resumia-se em molhar o pão no líquido adocicado, na esperança de mudar um pouco o gosto da manteiga de terceira que comprara para sua família no dia anterior. Não era muito o que ganhava como vendedor de balas no sinal, mas a ajuda que prestava à mãe e o sorriso nos lábios dos irmãos o estimulavam a querer ser alguém na vida, na ambição comum àqueles que sobrevivem no desalento da periferia.

"Anda, mininu!" - esbravejou Dona Firmina - "Tu vai atrasar para a escola!" - a preocupação da zelosa mãe com a vida escolar do filho não era aleatória, pois sabia que Adailson tinha dois grandes sonhos em sua vida: passar em um concurso público e fazer Medicina, objetivo não muito fácil de ser alcançado pelas pessoas daquele nicho social.

Ela não media esforços para encaminhar o filho mais novo, já que Adailson era a promessa de um futuro melhor para toda aquela gente. Animada pela esperança, Dona Firmina já não contava mais os calos que brotavam insistentemente de suas mãos, preocupada que estava em entregar as encomendas de roupas lavadas às clientes "bacanas" dos bairros chiques que deixavam com ela suas fartas trouxas semanalmente.

Enquanto olhava a mãe torcendo as peças de roupas nobres que traziam os cheiros de perfumaria francesa, Adailson pensava no quanto desejava morar em uma daquelas casas "chiques" e sair daquela pobreza. Não suportava o cheiro de aspereza que se misturava com Givenchya cortar o ar da periferia que tanto odiava: nessas horas lembrava, com raiva e mágoa, do pai que anos antes abandonara a família para viver com a amante grávida.

A família repudiada girava em torno do adolescente crescido imerso na ideia de ser o grande "gênio" da família. Suas notas, seu desempenho escolar, sua precocidade e inteligência racional eram objeto de constantes elogios na escola, inflando, cada vez mais, o pequeno ego daquele ser que respirava Medicina por todos os poros. Não sabia, ao certo, se desejava seguir a Cardiologia ou a Psiquiatria, mas, ao final, nada disso importava, pois o importante para Adailson era sair da miséria de a qualquer custo.

Calculista e determinado a atingir sua meta de sucesso na vida, Adailson tinha planos... Muitos, mas, como toda pessoa que não acredita em si, não ousava se arriscar no que não poderia controlar em seu pequeno mundo. Sua mente era fecunda de planos mirabolantes, quase todos encobrindo, sob a capa de doação e fraternidade, o compromisso forte de alimentar o ego vaidoso de Adailson, cada dia mais intransigente em relação à sua meta.

O maior medo, contudo, batia sempre à porta do moço, na forma da incerteza em relação ao fato de nunca conseguir concretizar nenhum dos sonhos que plasmava do mundo abstrato em que vivia...

Quase um autista, destoava da família, numa relação de amor e ódio que trazia para o jovem o constrangimento e a obrigação de levar alguns trocados para ajudar na manutenção da prole de sua mãe. Era o bastante, pois, de fato, sentia que ninguém ali poderia compreendê-lo, muito menos despertar sua atenção, pois o rapaz confiava piamente que, do auge de sua genialidade auto-identificada, ele era muito melhor do que todos em sua estirpe.

Inseguro, egocêntrico, frio e indiferente, Adailson, então, cresceu, alimentando, de maneira obssessiva e neurótica, o desejo de progredir. Ninguém poderia supor que, por detrás da pele alva de cordeiro, da fala mansa e da paciência invulgar, escondia-se o protótipo de uma alma voraz e gananciosa, capaz de manipular a todos ao seu redor, no intuito de obter o que desejasse.

Sagaz, logo passou em um dos muitos concursos em que haveria de se inscrever, pois, afinal, era o dinheiro que lhe movia a estudar e galgar, um a um, concurso por concurso, as dificuldades encontradas na vida, não tendo o menor pudor de começar um novo projeto sem, contudo, sequer fechar os que se amontoavam - em meio à poeira - em suas gavetas mentais tão confusas e massacradas pelas lembranças duras de infância.

Faltava-lhe algo, contudo, pois, inseguro de suas potencialidades, não arriscou inscrever-se para a Medicina. No ápice de um amedrontamento que lhe congelou o espírito, Adailson decidiu inscrever-se no vestibular de um curso menos concorrido, no afã de posteriormente, quando estivesse bem posicionado em um concurso que lhe desse respaldo financeiro, pudesse se dedicar à Medicina. Ele sabia que aquela não seria a opção consonante com seu coração, mas, em nome de sua ambição, o moço faria qualquer coisa, até mesmo passar por cima de si mesmo.

E foi assim, pouco a pouco, que a adolescência amarga de Adailson deu origem ao percurso de desumanização de sua alma, num percurso voraz de intensa consumação de sua sensibilidade, cujos resultados nem mesmo o jovem sonhador poderia ousar saber...

(...) to be continued (...)

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