terça-feira, 30 de novembro de 2010

Ana Julia e seus balões...

O dia rasgou o horizonte e o azul, enfim, pôde encontrar a Terra, tisnando o despertar com um afago de oceano ante a imensidão acobreada do cerrado. Ainda sonolenta, Ana Julia olhou pela janela de seu quarto, apreciando cada pedacinho de firmamento que refratava em sua retina, atenta e curiosa para o que iria aprender naquele dia de intenso Sol.

Sem dar ouvidos à mãe que a chamava para o café fumegante que pedia um bolo muito macio de fubá, Ana Julia tratou de se levantar, pois desejava aproveitar o dia fazendo o que mais desejava: sendo ela mesma. Sem os livros da escola ou a conversa da professora. Apenas ela.

"O que farei nesse dia tão lindo?" - conversou consigo enquanto vestia seu bermudão e amarrava a camisa de flanela quadriculada. Decidida a otimizar o sentido de carpe diem, Ana abriu seu baú de inventos, pois, quem sabe, dali sairia uma nova brincadeira para se deliciar enquanto o céu passava por ela.

Torcendo o nariz, olhou as aquarelas na parede, ao mesmo tempo em que deixava de lado seu nankin, não estava inspirada para aquilo. Fuçou, um pouco, suas revistinhas, sem desejar passar mais os olhos pelas histórias das heroinas que, no fundo, Ana Julia sabia serem ela mesma desenhada no papel bíblia delicado.

A bicicleta reluzente também não chamou lá tanta atenção. Ana Julia queria mais, sempre mais. Queria transformar o simples uma engenhosidade nunca experimentada antes. Desejava subverter a si nas brincadeiras que, uma a uma, criava no universo mágico de seu grande quarto lilás...

Foi quando viu no fundo do baú um pacote repleto de balões vermelhos. Os olhos de Ana Julia cintilaram diante da possibilidade de inventar alguma nova peripécia usando aqueles balões vazios. Encher os balões com seu próprio ar não era opção para a menina, pois isso seria de uma simplicidade que trazia certo desconforto a ela. De súbito, Ana Julia lembrou-se de uma oficina onde poderia encher os balões, apenas porque desejava vê-los flutuando em pleno ar.

Pegou sua bicicleta e, com pressa, levou em sua mochila o saco de balões, bem como um rolo de linha de pipa, afinal, não queria que os balões se soltassem tão facilmente.

"Oito balões!" - disse Ana para o senhor da oficina. "Eu gostaria que o senhor enchesse para mim esses oito balões!" - ansiosa, a menina ia pegando um a um e, enquanto o sinhozinho lá enchia os demais, ela ia dando os nós de marinheiro que havia aprendido nos almanaques do baú.

"Preciso dar um nó bem forte na linha!" - pensou Ana, cruzando as pontas para lançar melhor a ponta do balão com a linha dura de pipa. Pouco a pouco, cada um dos balões subia aos céus - sim! Aquele lindo céu que a abraçara pela manhã, trazendo-lhe um sorriso de ponta a ponta de sua boca cor-de-rosa, que se misturava ao rubro do balão que acabava de fechar.

Despedindo-se do senhor, Ana, feliz, saiu pedalando com seus balões, intrépidos, que se misturavam aos aromas e às cores do dia. Todos na rua olhavam para a menina, maravilhados com seus balões, pois o colorido intenso era perceptível a metros de distância.

Segura de si, Ana Julia olhou altivamente para a dança cósmica que acontecia em cima de sua cabeça. Eufórica, segurava o guidão com a mão esquerda, porque, pensando bem, para manter firmes e seguros os balões, precisava usar sua mão "boa", a direita.

Nesse compasso a menina andou, andou e andou, vendo o mundo se desenrolando, com num filme, à sua frente. Nada mais importava a ela, pois estava com seus balões dançantes. Sentia-se feliz, segura, mais poderosa do que qualquer das heroinas da revista que deixara de lado mais cedo, pois seus balões, seus lindos oito balões vermelhos a faziam experienciar a beleza da plenitude incontida naquele pequeno corpo de criança.

Embalada pela sensação orgástica de se soltar com os balões, Ana Julia não teve sequer tempo de observar que diante de si apareceu um bebê que se soltou de sua mãe em pleno parque. No atropelo, para não abalroar o menino, Ana Julia deixou seus balões escaparem. Colocando as mãos no guidão, evitou o pior. A criança, enfim, foi salva. Mas os balões...

Ah, os balões! Todos os oito lindos balões vermelhos alcançaram a liberdade e se misturaram com o ar, o vento, o azul do céu. Um a um, dissiparam-se em meio aos algodões de nuvens que entreolhavam a menina, lançando-lhe ternuras de um afago maternal de quem sabe o desfecho da história.

Ana Julia olhou a cena e não pôde conter as lágrimas que saim quase sem que ela pudesse fazer alguma coisa para impedi-las. Não conseguia compreender onde havia errado e o que havia feito para os balões irem embora assim, tão facilmente. Desolada, saiu da bibicleta e sentou-se numa pedra para acompanhar o voo solitário dos balões.

Perdida em seus medos mais profundos, Ana Julia chorou. Chorou como nunca antes havia chorado e, tamanha a dor em seu coração, não percebeu uma dor lacerante despontando em seu útero. Olhou para baixo e viu brotar de sua bermuda o mesmo tom de grená dos seus oito balões. Ana Julia sangrava, ali, sobre a pedra, pela primeira vez. Tornara-se adulta no mesmo dia em que perdera os balões que tanto desejava reter na segurança de suas mãos.

O tempo, de súbito, parou ali. Os pássaros não cantaram, por momentos. Apenas o vento veio brindar a descoberta de Ana Julia: o silêncio...

Enxergando apenas os balões indo de encontro ao horizonte, Ana, acalentada, compreendeu o significado de tudo aquilo: precisaria soltar todos os seus balões seguros, pois só assim o mundo e os céus poderiam receber as dádivas do que de melhor a menina teria a compartilhar com a Vida!

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