segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A amora e o sonho

Ariana estava se preparando para dormir, pois o Natal não tinha a menor significação para ela. Já fazia um tempo que não mais sentia ou acreditava na indicação que o Solstício de Verão apontava sobre renascimento, porque Ariana não mais renascia...

Jazia morta, em vida, para tudo que se colocava diante de sua vida e mesmo esboçando seu terno e doce sorriso, seus olhos amendoados, ao fundo, mostravam o vazio de suas volições e sensações. Não batia mais no peito aquela sensação de flutuação, pois seu corpo - retrato de sua vida - era apenas uma densa massa sujeita à gravidade, impedindo Ariana de voar e se lançar à plenitude do colorido de seu mundo de sonhos e idéias.

O tic-tac do relógio de parede sempre enganava Ariana, que dormia ao som do amigo pontual, tal qual a disciplina de um monge secular que, sem pressa, relaxa e se deixa embalar pelo afago dos sonhos.

Nesse dia, porém, Ariana dormiu em vida, viveu em sonho uma fábula que não sabia ser real ou imaginária para o mundo dos vivos. Não importava, porque, afinal, viver sozinha em seu mundo havia trazido à jovem mulher a certeza que sonhar era a mais vívida experienciação de si.

E "repleta de si", Ariana sonhou, sonhou como nunca havia sonhado, recordando do passado de renascimento que jamais esquecera, numa história de encontro que nunca tivera...

Lembrou-se (ou "sonhou-se", "desejou-se", quem sabe) de um tempo em que era feliz, tal qual é hoje, mas um momento em que a felicidade vinha acompanhada de um renascimento, de um início. Um dentre vários inícios de sua vida, contudo, foi muito mais do que o tenro frescor de uma alvorada que anuncia o canto dos pássaros.

Ariana era feliz, sem dúvida, pois todo mundo assim achava. Afinal, tantos sorrisos, tanta presteza, tanta solitude somente poderiam vir de alguém repleta de amor. Um amor, contudo, que Ariana havia trancado em um quarto escurecido pela dor de sua alma, apagando, pouco a pouco, de sua essência, a sensação gostosa e acalentadora da luz que trazia em si.

Dentre tantos fantasmas por ela criados em sua vida de renascimentos, Ariana criara aquele que, sem ela saber - mas sendo sabido por todos ao seu redor - era a sombra de si mesma, diluída no sofrimento da culpa que carregava consigo, por não deixar a Natureza seguir o fluxo de suas descobertas.

Ariana sonhou com toda sua vida de Natais passados, como num rolo de filme em tiras justapostas onde presente, passado e futuro se entrelaçam num continuum temporal que não entendia muito bem, mas que fazia, ali, naquela cama, naquele mundo, o coração dela palpitar.

Não poderia mais viver dos Natais passados, muito menos poderia conter o fluxo da vida e da morte, pois a partir dali, a alça do tempo-que-não-existe persistiu e insistiu, levando Ariana pela mão, a enxergar a si no espelho de sua alma.

Mesmo quando lágrimas de Sol quedavam de seus olhos profundos, Ariana sentia paz, pois a sensação do renascimento voltara, depois de tanto tempo, a povoar seu peito, coroando a jovem com o resplendor da pulsação de uma primavera que acontecia, mas que, pelo medo, não transbordava para ela.

Foi quando Ariana acordou, feliz, plena, e viu, da janela de seu quarto, o brilhante ponto que saltava, uno, de sua amoreira, anunciado pelo toque das cigarras orquestradas pelo divino: nunca havia tido amoras em seu quintal e, justamente aquele dia, aquela amora surgiu, lembrando-lhe que a Natureza, mesmo quando não compreendida por nós, segue seu implacável trajeto rumo à vida-morte-vida, na espiral eterna do renascimento.

E com o sangue rubro da amora pendente quedou das entranhas de Ariana seu fluxo, trazendo-lhe, dali a pouco, o passado presente no peito incontido da jovem, apontando para a felicidade de cada respiração.

Uma intuição bem forte a encaminhou, então, para o início de sua mesma nova vida de antes, uma nova vida que, num passado remoto, não tinha espaço, mas que, no aqui e no agora da vida de Ariana, era a constante marca de sua essência. Afinal, essências não mudam e Ariana, por ter desvendado a sua, fez irromper a mágica presente em cada ponto desse imenso Universo: o amor...

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