terça-feira, 7 de setembro de 2010

Olhando para a herança céltica do Sagrado Feminino

Hoje pretendo dialogar com Pedro May que, em sua obra Os mitos celtas, inicia um mágico percurso a partir de uma incomum proposição a respeito de como enxergamos o Império Romano: "o homem comum gosta de vangloriar-se de qualidades que não possui, mesmo quando acredita sinceramente desfrutar delas. Gostamos de pensar que somos corajosos e imparciais exploradores da verdade e que estamos dispostos a fazer o que for preciso para chegarmos a ela; que estamos abertos a tudo que o mundo nos oferece de novo nesse sentido"

A História "oficial" sempre foi elaborada discursivamente pelos grandes vencedores, num escrutúnio de verdade que, ultrapassando tempo e espaço, trouxe para o presente a sensação de bem-estar e a zona de conforto necessários para que, com um ingênuo anacronismo, utilizemos a memória do passado segundo puro arbítrio, catalogando culturas e pessoas, acenando, assim, para nossa "superioridade romanística".

Somos bem mais "bárbaras" do que supomos ser, dada a mescla cultural que a vaga avassaladora romana trouxe para nossa herança, quer seja na passionalidade com que contemplamos o mundo e sua poesia, ou, ainda, na devoção com que algumas de nós, eternecidas, olha para a Natureza e se alia ao som que as folhas em queda produz.

Afinal, não foi no Império ou na sociedade romana que nós, mulheres, encontramos alento para a demanda de igualdade, mas, antes, posições dissimétricas no espaço público. Pedro Silva, pesquisador da cultura, lembra bem a herança de Boudicca, rainha dos Iceni, guerreira destemida que guiou sua tribo para uma das lutas mais famosas contra Suetônio.

Por que, então, diante de tanta História, insistimos em nos olhar com a percepção latina de subserviência? Da "timidez" disfarçada em naturalização de heranças genéticas de características que seriam "inatas" a homens e mulheres? É importante perguntar em relação a quais homens e mulheres estamos anacronicamente nos comparando.

Eis o sentido do perigo de se trabalhar com rótulos internalizados. "A mulher deve ser assim". "O homem deve ser homem". Espera-se, com isso, a assunção de papéis, com a reprodução perpétua de modelos que sempre estão a favorecer o desequilíbrio - pelo menos há 2.000...

O que realmente significa isso? Dentro de uma perspectiva binária de compreensão de dissimetria, significa olhar para o mundo de desigualdades e mantê-las, usando o reforço histórico que - com a "legitimidade" dos livros e dos "doutores" colocam-nos no calabouço da sociedade... greco-romana, aceitando, de bom grado, o acervo cultural e patrimonial de sectarização de gêneros, onde a igualdade é nominal, nunca exercida com voz.

Basta observar o panteão mitológico greco e, posteriormente, o ctrl c + crtl v mais famoso da História, o panteão copiado pelos romanos para observar que, a despeito das nuances, a posição da mulher, nossa posição, é secundária, pois as deidades são comandadas por um Deus - Zeus - infiel, manipulador da verdade e opressor.

Hera é tomada como a esposa corneada que, em nome de seu infortúnio, age ao arrepio do seu "maridão", sendo "manipuladora, perversa e vil", atributos que ainda hoje são relacionados à figura da mulher, como vemos, por exemplo, no Martelo das Feiticeiras de Sprenger e Kramer: "mulheres são, por natureza, mais impressionáveis e mais propensas a receberem a influência do espírito descorporificado; e quando se utilizam com correção dessa qualidade tornam-se virtuosíssimas, mas quando a utilizam para o mal tornam-se absolutamente malignas" (2002, p. 115).

A fortaleza de uma mulher no panteão greco-romano, traz a ela a identidade com "atributos masculinos", pois, segundo o mito, a melhor amiga de Zeus era sua filha Athenas, que providencialmente havia sido 'gerada pelo pai' a partir de sua têmpora esquerda, empunhando armas e sendo racional e calculista (atributos tidos como masculinos apenas o bastante para aproximá-la do seu genitor "perfeito").

A história perfeitinha romana esquece, contudo, da potestade de Morrighu, a deusa soberana que paira por todas as batalhas e, senhora delas, sela o destino dos heróis, a exemplo de Cuchulain. Ou, ainda, o poder de Cerridwen, empenhado no caldeirão de onde exsurgiu a gota solitária para seu filho, sorvida por Taliesin...

O que dizer de Brighit, senhora da poesia? Afinal, para a cultura latina, poesia e palavra elaborada não poderiam ser marcas de mulheres, por natureza sem alma e estúpidas, que "serviam apenas para procriação". Quem dirá uma Deusa de poesia? Ou, ainda, uma deusa ferreira? O que significa isso?

Em tempos de redefinição de locais e papéis, importante olhar para trás, pois, talvez, nossa herança seja muito mais densa e complexa do que julgamos ser. Talvez sejamos mais bebeoras de malte e cevada do que ambrosia e néctar.

Hey, ho!

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