segunda-feira, 5 de julho de 2010

Os ipês florescem no inverno...

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Brotando da terra semi-árida surge o milagre em meio ao horizonte queimado pela seca: para onde quer que a vista se volte, de todos os lugares despontam pontos roxos, lilases e violetas.

Época dos ipês-roxos florescerem aqui e, com eles a necessidade de desaceleração de toda a vida agitada que levamos para contemplar o recado que a Natureza insiste em dar para uma humanidade tão tumultuada internamente.

Tenho andado num contínuo processo de somatização e, com ela, veio uma sequência de pequenas indisposições virais que me colocaram "de cama" e "nocauteada"... De início, achava que seria muito desagradável ficar "acamada" e "olhando o teto" enquanto se trava uma batalha interna entre leucócitos e vírus pela minha alma, ao mesmo tempo em que me prostro a refletir sobre os processos internos de conflitos que necessito enfrentar por agora.
Ficar de cama, contudo, acabou agregando a minha vida muito mais do que um preconceito de me julgar na mais pura ociosidade e no descompromisso com a "responsabilidade": trouxe a calmaria de encontrar minha essência desacelerada em meio a tanta agitação. Com essa certeza movendo minha alma, saí da cama para comprar meus remédios...
Sim, claro, remédios, ou, prefiro dizer, verdadeiras fontes de cura plasmadas nos sagrados alimentos que usualmente TAMBÉM não temos tempo de contemplar, muito menos de agradecer como dádiva. Hipócrates dizia "que teu alimento seja teu único remédio", lembrando-me da alquimia secreta contida na sabedoria da alimentação.
Fast food, dentro desse paradigma, nem pensar. Necessito parar tudo/nada que faço para ritualísticamente olhar meu alimento e prepará-lo amorosamente para mim. Esse sentimento não poderia encontrar em qualquer esquina ou restaurante.
Ergui-me, então, para buscar shitake, brócolis e gengibre, fontes ancestrais de recomposição imunológica para o organismo. Lancei-me, enfim, mais uma vez, no desconhecido imaginário urbano, meio zonza com o efeito da batalha campal dentro de mim...
Esse impulso, porém, resgatou mais uma lembrança que estava latente em meu universo: a recordação de serem exata e pontualmente nesses ditos "momentos de ócio" que a vida se mostra como ela é, sem a rotina de um dia-a-dia que avassala a alma e nos impele para uma jornada robótica de trabalho alienante de nossa energia.
Foi assim que me vi em pleno Planalto Central semi-árido imerso nos tapetes celestes da maravilhosa aquarela de ipês-roxos que invadiram a cidade...
Daí, enfim... A hecatombe nuclear de meus conflitos!
Passamos, digamos, 50, 60 anos vendendo mão-de-obra para alimentar uma cadeia produtiva de serviços e produtos de consumo em larga escala, poluindo o meio ambiente e não usufruindo da mais-valia que docilmente alienamos, quer seja para o burguês-empresário, ou, ainda, para o Estado (esse, sob a desculpa fajuta de sermos servidores do povo. Que sejamos, mais a noção de alienação no expediente de opressão é a mesma: arranca-nos da alma o vigor de viver).
Batemos no peito, seguros e seguras que nossa boa colocação no concurso nos dará a Meca da auto-realização, porque, dali em diante, poderemos comprar, comprar e comprar. Estudamos e nos matamos 12 a 14 horas na expectativa de aprovação em requintados concursos, viramos "concurseiros e concurseiras" cujo vocabulário de vida passa a se resumir em fórmulas e "decorebas", resultado de um adestramento bem-sucedido numa salinha de cursinho qualquer.
Quando tomamos posse, tiramos, orgulhosos e orgulhosas, fotos com a família, prometendo mundos e fundos, porque, agora, "o dinheiro vai dar". Ficamos anoréxicos e anoréxicas, colocamos silicone e botox, apenas porque desejamos, de posse do "vil metal", a aceitação social, pretendendo exterminar nossa diferença na padronização tosca de uma uniformidade cuja regra não sabemos quem definiu (ou sabemos?).
Recebemos o salário no quinto ou décimo dia útil, vamos, em fila indiana, ao supermercado, que se tornou "programa e lazer" (?). Levamos até nossas crianças para esse "programão", dizendo, por via indireta, "vá, filho ou filha, comece, desde já a internalizar a automatização e perca a consciência em relação ao mundo". Estabelecemos, então, pouco a pouco, um verdadeiro expediente cultural de reprodução automática de comportamentos, apenas porque "todo mundo faz", ou, pior, "isso é natural".
Sem saber, aos poucos, nossa alma divina se entorpece e enebria em meio a tanta Matrix. E, ao final, a couraça se cauteriza, fazendo com que a fluidez interna ceda espaço para a programação cibernética de nossa vida...Só que não somos máquinas!
A rotina robotizada cega, fere e avassala a alma sensível, acelerando átomos e exercendo pressões insuportáveis na alma humana. "O trabalho dignifica a alma", esse é o lema... resta saber qual é o tipo de trabalho a ser realizado sem que seu sucesso ocorra em detrimento do sangue de quem lavora.
8 horas, 10 horas, 12 até de uma jornada de exaustiva rotina... Jornada? Dará onde? Numa "confortável vida"? de qual vida estamos falando? Qual o sentido do viver nesse Planeta às custas da saúde e da própria vida em si, sem a máscara do "trabalho escravo".
As relações humanas estão mudando e, com elas, a necessidade de se realocar a concepção de trabalho para uma forma dinâmica, que possibilite o usufruto de mais horas de "lazer contemplativo", de pura qualidade de vida, do simplesmente "não fazer coisa alguma".
Mas, na dialógica capitalista neo-liberal, culpamo-nos muito e nos auto-titulamos "vagais". "Ih, hoje fiquei no ócio, sou uma vagabunda mesmo" - voriferamos para nossas sucateadas almas perdidas no limbo do sistema em relação ao qual nos sentimos desconfortáveis.
Não quero mais somatizar meus conflitos de ócio... eis-me aqui vivendo dias de puro deleite, estudando, lendo e, com prazer e muito conforto, dispendendo parcela (e não toda) da minha energia com o ofertamento de meus préstimos. Não vendo mais minha mais-valia... Não cedo mais meu sangue.
Mas, para isso, preciso prestar muito mais atenção aos ipês-roxos que outrora via de relance de dentro de uma sucata...


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