sábado, 22 de maio de 2010

O dia em que Clarice limpou sua alma...

O Sol já produzia as primeiras gotas de suor quando Clarice abriu os olhos e observou sua casa em franca desolação higiênica. Ela não era bem o protótipo da pessoa emporcalhada, mas sentindo o desconforto de uma vasta propaganda midiática que empurra o ser para a limpeza psicótica, havia ido para a cama no dia anterior disposta a acordar e limpar seu sagrado lar.

Logo nas primeiras rajadas de ofuscantes raios solares tentou desistir - "Tenho mesmo que limpar isso tudo?" - desanimou, olhando a pilha de louças que insistiam em lutar contra a gravidade, num equilíbrio tão instável quanto a própria psiquê de Clarice.

Depois de diversas idas ao terapeuta, Clarice se descobriu neurótica, constanado ter passado boa parte de sua vida a andar com um pano de chão limpando as passadas impressas das pessoas que lhe visitavam.

Sua necessidade de limpar a casa era proporcional à que sentia de se voltar para si, num afã de expurgar da alma - com uma mangueira de bombeiro, se fosse o caso - tudo que outrora a aborrecera.

Dores, traições, abandonos, humilhações: essas eram as louças delicadas dentro do grande acervo emocional que Clarice insistia em esconder dos outros no armário particular seu seu mundinho feliz, revelando-se apenas para sua imagem no espelho, em recorrentes diálogos silenciosos que travados durante anos.

"Armários... sempre é bom começar a tirar as tralhas dos armários" - pensou, lembrando de um programa pay-per-view que "ensinava"a arte de arrumar uma casa num ritual que sempre iniciava pelos armários, segundo a orientação dos experts. Segundo a apresentadora do programa, tanto as recordações felizes, quanto as dolororas, deveriam ceder o espaço do armário para novas experiências, de modo que a limpeza, por assim dizer, deveria ser "geral".

Foi então que, embalada por um rompante de otimismo expurgatório, Clarice abriu o armário, logo sendo recebida, de bom grado, pela primeira rajada de um vento gostoso de perfume de lavanda. Era ali seu santuário inatingível aos olhos comuns, onde Clarice passou parte de sua vida guardando todas suas lembranças do passado.

Fotos, livros, bilhetes apaixonados, cartas de amor, embrulhos de papel e flores secas dividiam amorosamente espaço com tantas outras caixas delicadamente envoltas em uma adocicada perfumaria de sândalo, hábito que herdara de sua avó. Uma profusão de aromas enebriou Clarice, arrancando-lhe das entranhas aquela invulgar vontade de se livrar de tudo. Ao invés disso, sentou-se ao chão, começando, dali em diante, a observar o fluxo que sua vida lhe trazia novamente, nas memórias contidas em tantos objetos.

Em átimos de segundos Clarice pôde ver seu passado se confundir com seu presente. A cada lembrança relatada nas páginas do diário que lia, Clarice sentiu o mundo de recordações invadir seu coração. Não sabia, naquele momento, se haveria espaço para tanto sentimento que simplesmente começou a escoar, como as águas de um caudaloso rio, que não pedem licença para levar tudo aquilo que vêem pela frente.

Sem reparar, o rio corria por seus olhos, ao mesmo tempo em que os dedos, apressados, teimavam em passar página por página de seus escritos, que se convertiam, na mente e no coração de Clarice, nas lembranças de tudo que vivera até ali.

Compreendendo que não se pode "jogar fora a própria vida", Clarice, então, parou e sorriu, decidindo guardar tudo de volta em seu lugar sagrado. Embrulhou, em meio a sorrisos nostálgicos, todas as fotos, as cartas, os papéis e os presentes que tão atenciosamente recolheu durante sua trajetória.

"Limpeza? Que limpeza? Vou parar com essa neurose!"

Afinal, percebeu que não precisaria muito mais de um pano de chão com algumas gotas de desinfentante para dar à cozinha o ar de uma casa habitada por alguém que, vendo todo seu caminho, sabe, ao final, que a limpeza da alma não se faz com um lustra móveis...

Um comentário:

  1. Hum... Clarice, sei... Acho que conheço ela.
    Não seria Alessandra? Juliana? Ou Maria também?? Gostei dela!

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