quinta-feira, 20 de maio de 2010

O anjo da casa


Em toda casa existe um anjo a "assombrar" as belas "damas", dizendo sempre, quase sussurrando, que "uma mulher não deve ser impetuosa", ou, ainda, "tenha compaixão, afinal, é uma virtude das mulheres". Virginia Woolf passou muito tempo resenhando autores da época e lutando, até expulsar de seu convívio, o Anjo que habitava a sua casa e dizia para "não ser tão dura com os autores", afinal, "você é mulher".

Muito pouco a cultura ocidental sabe de suas belas heroínas "amazonais", ícones de amor, prazer, impetuosidade, pretensão e, sobretudo, violento amor. Violento amor? Contradição em termos?

Não, as divas celtas, antes disso, personificavam arquetipicamente do ser humano, pois estão longe, muito longe daquele maniqueísmo cosmogônico construído no discurso do Bem e do Mal, pois não existem Deuses e Deusas “puristas”, que personifiquem apenas um “lado” desse tratado dialético de unilateralidades com que parte das tradições religiosas e filosóficas cataloga o mundo e sela o destino de seus habitantes, enviando para os confins do mundo (limite de Hades, Inferno etc.) aqueles que ousam contrariar a ordem.

Nesse sentido, a mitologia celta mostra-se caótica, libertária e contestadora, porque não se propõe a reproduzir uma percepção de moral higienizante e angelical, típica da predileção dual com que boa parte das tradições religiosas se fundamenta.

As deusas celtas, em particular, são o retrato fiel da complexidade humana tangida pela imortalidade, materializando a consistência existencial que nos coloca, no aqui e no agora, a questionar nossas condutas e atitudes, em cima de uma “reta razão” que somente poderia acenar para um, dentre os dois caminhos a seguir: céu e inferno, bem e mal, na despótica dualidade política do ideário teológico ocidental que empunha armas para a destruição do outro.
Passamos boa parte do tempo na preocupação em conduzir nossas vidas de acordo com princípios éticos absolutos, que levam à medonha escolha entre dois caminhos, como se fosse muito simples, fácil e cômodo o despojamento de todo rol de informações imemoriais que trazemos de outras existências, onde o bem e o mal nem sempre são visíveis.

Morrighan é a contramão da dualidade puritana, porque encerra em sua fecunda personalidade a complexidade e a riqueza de uma entidade que se compõe de unidade, profundidade e latência.

Acredito, inclusive, que a polarização em torno da expressão Morte-Vida também seja, ao final, um simples trocadilho semântico que induz ao erro de crermos na existência de situações definidas de mundos (mundo dos vivos, dos mortos) quando, no simbolismo celta, o material e o espiritual constituem a mesma essência, tendo por elo a Natureza e seus mistérios.

Morrighan ama, odeia, fere, cura e mata, colocando, assim, em xeque-mate a compreensão de um mundo dual, em que as “qualidades más” são colocadas embaixo do tapete, enquanto a “suprema bondade” é revelada e enaltecida.

Como oráculo, Morrighan estabelece a soberania do conhecimento além-mundo e, revestida de poder, concita o Deus-Sol a chamar para si a tarefa de guiar o povo. Deusa e Deus, ali, compondo a harmonização e a unidade, para lembrar da complementaridade entre gêneros, e não da competitividade.

Em outro episódio, a Grande Rainha une-se sexualmente com Dagda na véspera de Samhain no rio Unshin, em meio aos corpos ensangüentados daqueles que, no dia seguinte, iriam ser mortos em combate. Interessante refletir sobre a percepção oracular e meta-temporal do evento, por conta do encontro se dar num momento “fora-de-tempo” (nossa, como me sinto fora do tempo), já que, de fato, a guerra iria ser travada no dia seguinte.

Amorosa, a Rainha forneceu ao Deus importantes informações sobre o combate, além de informá-lo que também iria tomar parte na luta.

A história que acho mais intrigante, porém, relaciona Morrighan a Cúchulainn, o herói que despreza a deusa e, assim, atrai sua ira eterna, ao ponto de aguardá-lo ao final da jornada mítica.

Reza a lenda que a Rainha enamorou-se do herói, prometendo-lhe o mundo se ele com ela se casasse. Cúchulainn, porém, no auge de sua determinação guerreira, recusa a oferta, dizendo que “not have time for a woman’s backside” (não tenho tempo para uma traseira de mulher), menosprezando os favores da rainha e, com isso, produzindo sua ira.

Depois disso, Morrighan ainda apareceu, em luta, para o guerreiro, sob a forma de um lobo, uma enguia, de uma novilha vermelha descornada e, por último, de um corvo, que iria aguardar o fim da agonia de um moribundo Cúchulainn.

Mais uma vez, a trindade, pois a deusa encarnou três animais de poder para, por último, incorporar o corvo, guardião eterno dos segredos do Além-vida. Detalhe: ela a negou, por três vezes, porque, a cada momento de sua aparição para o jovem, a deusa fora por ele ferida. Mesmo assim, continuou esperando por ele até o final...

O coração possui razões das quais a própria razão desconfia? Não, sei, ao certo, porque, lendo a história da deusa, passo, cada vez mais, a desconfiar que a razão tenha razão.

Acredito que o coração, ao final, detém todos os segredos do mundo. Apenas sei – porque sinto, não porque saiba – que a transcendência da polarização é a chave para a compreensão da mitologia celta, de suas deidades e, para nós, humanos e humanas, mortais, de nossa própria história e jornada. Eis-me, aqui, então, fazendo da minha própria vida uma jornada lúdica, onde tema, mito e mitemas compõem, a todo tempo, cada passo da minha brava, amorosa e plena trajetória!

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