quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O grito sufocado de um Dedo Libertário


Era um dia, como outro qualquer...

O Sr. Dedo levantou com o raiar de mais um nascer do Sol, espreguiçando-se à sombra de uma frondosa jaboticabeira, ao mesmo tempo em que bocejava num gutural som de despertar. "Vejamos as notícias de hoje" - esperando, afoito, pela hora da leitura do jornal matinal, regada sempre com um maravilhoso café da manhã.

"O prazo termina amanhã", "As cópias não estão prontas", "Que trânsito dos infernos" - foram as manchetes daquele dia, que disputavam espaço com as informações sobre tempo, política e relacionamento humano. "Nossa, como tudo permanece igual, dia após dia" - pensou, com uma certa dose de desalento. Nesse mesmo instante veio à mente a pergunta que nunca se calou: como pode ser possível viver uma existência toda num marasmo existencial, sendo sempre cobrado por suas ações?

"Seja firme, Dedo!" - "Aguenta, você sustenta tudo acima" - sim, essas eram as máximas do cotidiano de Dedo, que sempre era lembrado disso por seus pares, de modo a saber muito bem o "seu lugar" na escala hierarquizada e fortemente rígida naquela sociedade de castas que drenava seu sangue e o espoliava até a exaustão. Afinal, ali tudo funcionava como um maquinário, onde cada "peça" era apenas um elemento a fazer parte de uma grande engrenagem.

Dedo se levantava, tomava banho, assistia ao espetáculo da escovação de seu vizinho Dentes. Observava a tudo atentamente do "topo" de sua colina, mesmo que, para os vizinhos e amigos, Dedo morasse, enfim, na periferia. Aliás, para o jovem, isso apenas confirmava o jogo geopolítico que sempre apontou uma inversão entre localidades centrais e periféricas, dentro da qual, Dedo, Pé, o casal Tornozelos e demais convivas, faziam, ao final, reverências aos nobres companheiros do topo...

Dedo estava cansado disso... Há tempos, em uma informal conversa, confessara ao Braço que não mais estava disposto a seguir num regime de exceção, uma ditadura de classes dentro da qual, mesmo sendo importante, sua opinião era deixada de lado, em prestígio dos dirigentes. O General Cérebro Encéfalo comandava aquele país com mão-de-ferro, não admitindo consenso, harmonia, sequer diálogo entre os cidadãos. Era difícil a reunião. Dedo sequer conhecia o general: nunca o viu pessoalmente e o máximo que conseguira foi alcançar o Queixo porque existia uma vigilância enorme forjada em torno do Líder Máximo do país.

Depois de tanto pensar - sim, Sr. Dedo era nitidamente um ser pensante, com altas notas na escola e um brilhante futuro pela frente, se não fosse o regime de exceção a limitar "seus passos" (que ironia!) - Dedo decidiu colocar adiante um plano mirabolante e, ao mesmo tempo, perigoso. Iria ser o baluarte de uma revolução. Estava disposto a destronar o poderoso Cérebro e instaurar a democracia no país, pois desejava igualmente de oportunidades para todos os cidadãos dali. Convocou uma reunião com seus irmãos mais novos (Dedo era o primogênito e, por isso, mais respeitado na família), concitando também seus vizinhos da periferia. "Sim, meus amigos, somos quem sustenta esse país e devemos perseguir o respeito dos demais" - essas foram as palavras de ordem que Dedo proferiu, sendo aclamado por todos que estavam ali presentes.

"Mas, se pararmos de trabalhar tudo acabará" - ponderou Joelho, a seguir. "O país conta conosco para que possamos ganhar nosso pão. Isso é um suicídio, Dedo!" - advertiu, sendo aplaudido pelos que estavam preocupados com as represálias.

Dedo refletiu, parou por aqueles segundos que representam uma eternidade... Olhou para cada um dos presentes, coçou a cabeça e suspirou: "Sabe o que mais me agradava em nosso país? FELICIDADE. E hoje, o que mais me entristece? Saber que, ao final, não vivemos uma felicidade plena, porque nos permitimos, sob tortura, ficar ao jugo de um tirano que destronou nosso Monarca. Sim, senhoras e senhores, tenho saudades do tempo em que Coração reinava num parlamentarismo constitucional. Tenho saudades de nossas assembléias, onde conversávamos, todos nós, em harmonia, e agíamos na uniformidade de espírito, sendo UNOS, e não fragmentados..."

"Longe de vão esse dias e, por certo, se não fizermos nada, morreremos sem atingir a consciência do que é o viver. Por isso, pedirei o apoio de vocês e me oferecerei em sacrifício. Vou, sozinho, para a guerra" - afirmou Dedo, já reunindo seus pertences para a batalha final.

Os membros silenciaram... Nada mais seria dito, porque, de fato, estavam esperando que alguém se oferecesse para o sacrifício. Faltava a todos a coragem que sobrava naquele baixinho chamado Dedo...

A possibilidade de malograr êxito era alta, porque os portões do Castelo do Casal Mente e Cérebro eram guardados por uma série de mecanismos de defesa: medo, espanto, ansiedade e toda sorte de sentimentos que eram mantidos como soldados de reserva e manipulados pelo poder do tirano, que se escondia para não ser encontrado, enfrentado e destronado.

Mas, mesmo assim, Dedo partiu, com a certeza que não mais voltaria para sua casa, porque a opção, dali para a frente, seria a morte ou a libertação. Com essa certeza, Dedo lançou um último olhar lânguido para sua casa, despediu-se dos irmãos e dos membros e partiu para sua jornada solitária, certo que, dali para a frente, encontraria seu destino...

Depois de 2 dias de caminhada, sendo criticado, advertido e ironizado, Dedo deparou-se com a estrada do castelo e, em sua frente, uma placa, dizendo "Não ultrapasse, campo minado" - Lembrou, então, que ali era zona de combate no passado e que deveria ter cuidado, pois muitas bombas poderiam explodir naquele local. Controlando a respiração, Dedo se lançou, vagarosamente, rumo à trajetória que escolhera para sua vida: iria contestar o domínio de Cérebro e fazer romper, dali, uma chuva de democracia em seu país.

Com a alma cheia de certeza e coragem, Dedo não teve tempo de se desviar de uma pequena mina, que explodiu e o atingiu, em cheio, bem no peito... Em meio a tanto sangue espesso e vívido à sua volta, Dedo olhou ao seu redor e se lembrou da época em que era apenas uma criança... Não precisava doar suas entranhas para uma jornada de robotização, pois o mundo era apenas o quintal e a jaboticabeira...

Sentia frio e não conseguia mais se mexer... "Vou morrer sem conseguir completar minha jornada" - pensou, ao mesmo tempo em que sentia uma daquelas lágrimas que caem sem querer de nossas faces, aquelas que orgulhosamente negamos, mesmo que desejemos vertê-las...

Quando já sentia a morte chegar, Dedo ouviu um pulsar se aproximando dali... "Bum-bum, bum-bum, bum-bum" - em passadas largas, afoitas, porém seguras e certeiras. Ao levantar os olhos, Dedo viu caminhando, em sua direção, o Grande Rei Coração, seguido de perto por todos os membros de seu país que, convocados, foram à guerra deflagrada por Dedo.

"Pé, Dedos, levem Dedo para a enfermaria" - bradou o guerreiro real enquanto lançava um sereno olhar de gratidão para o pequeno: "Meu amigo, você fez o mais importante, merece descansar. Graças a você a à sua indignação aprendemos aqui a nos solidarizar, a sentir e vivenciar a compreensão de um mundo de UNIDADE DE ALMA. Muito grato por você despertar isso, meu amigo! A Era da Mente acaba aqui hoje, para que o pulsar do Coração volte a unir a todos..."

Seguido pelos membros, Coração avançou, enquanto Dedo ia, feliz, para a tenda, a fim de receber o bálsamo que iria, dali a pouco, restaurar seu peito e cicatrizar suas feridas.

3 comentários:

  1. Essa história é uma grande metáfora desse nosso mundo que é controlado por aqueles que acham que tem o poder. quando na realidade o poder emana daqueles que agindo com o coração, são os únicos capazes de realizar uma grande revolução. Parabéns pelo texto...

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  2. gostei, Lê! agora vc está exercendo a sua verdadeira vocação: escrever. a sua Excalibur é uma caneta e as suas estradas são papéis, folhas, árvores, redes......
    beijos
    bia

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  3. Alê, no meu caso específico quem está partindo para o ataque são os rins que inventaram umas pedrinhas pra me jogar na cama em cólicas terríveis. Tudo, é claro, pra me fazer ver que estou seguindo o mesmo caminho que desprezo e engolindo toda sorte de sapos que, dentro de mim, se transformam em pedras que, na vida real, quero atirar em quem acho que está me oprimindo, abusando de mim!! Mas a única pessoa capaz de me fazer refletir sobre é vc, né!!!!

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